
A espécie, que estava ausente da região desde 1910, teve sua reprodução registrada em uma área de preservação no Ceará. Periquito-cara-suja é considerado o psitacídeo mais em risco de extinção no Brasil.
Acervo/Aquasis
Após mais de um século sem registros na região do Planalto da Ibiapaba, 18 indivíduos de cara-suja (Pyrrhura griseipectus) foram reintroduzidos na Reserva Natural Serra das Almas (RNSA), no Ceará, em dezembro de 2024. A ação, que faz parte do projeto Refaunar Arvorar, visa restaurar a biodiversidade local e dar uma nova chance à espécie que havia desaparecido da região. A iniciativa é uma parceria do Parque Arvorar com as ONGs Associação Caatinga e Aquasis.
Além das 18 aves, três outros psitacídeos apreendidos pelo IBAMA e levados ao Parque Arvorar também foram reintroduzidos. Entre eles, uma fêmea colocou seis ovos férteis, dos quais três filhotes já nasceram, marcando a primeira reprodução da espécie na região em 114 anos.
O nascimento desses filhotes é um sinal claro de que a espécie encontrou condições favoráveis para sua sobrevivência e reprodução na região. Nativo do Ceará, o cara-suja foi declarado extinto em várias regiões do Nordeste nos últimos 50 anos e, até 2017, estava classificado como “Criticamente em perigo” (CR) na Lista Nacional de Espécies Ameaçadas de Extinção. Hoje, grande parte dos habitats onde a espécie existia anteriormente já não oferecem as condições necessárias para seu desenvolvimento.
Graças a esforços de conservação, a espécie foi reclassificada para “Em Perigo” (EN). Com as reintroduções em andamento, o risco de extinção da espécie pode ser ainda mais reduzido, proporcionando um futuro mais seguro para essa ave que esteve à beira de desaparecer.
Filhotes de cara-suja marcam a primeira reprodução da espécie na região em 114 anos.
Associação Caatinga
“Ainda é só o início. Reintroduzir animais na natureza exige monitoramento constante e enfrentar desafios complexos. Mas o nascimento dos filhotes já é um sinal positivo de que os caras-sujas estão se adaptando ao ambiente e podem repovoar a região com sucesso”, diz Fábio Nunes, biólogo da Aquasis.
Reintrodução e desafios
A reintrodução do cara-suja na região do Planalto da Ibiapaba não foi um processo simples. Os 18 indivíduos liberados na Reserva Natural Serra das Almas passaram por um rigoroso período de aclimatação, que envolveu a adaptação ao novo ambiente, com a utilização de caixas-ninho e comedouros para auxiliar na adaptação das aves ao seu habitat original.
As aves apreendidas pelo IBAMA passaram primeiramente por um período de recuperação, incluindo cuidados veterinários e comportamentais, para garantir que estivessem aptos a serem inseridos no processo de reintrodução.
“Após a avaliação comportamental e clínica da nossa equipe técnica mostrar que o animal estava saudável, informamos prontamente aos órgãos envolvidos para que eles definissem a destinação do animal. A fêmea, juntamente com as duas outras aves recebidas, foi então integrada ao projeto Refaunar – que tem como objetivo o repovoamento de espécies nativas em áreas onde haviam desaparecido. Com o aval dos órgãos, o animal foi encaminhado pelos técnicos para a RNSA, onde se reproduziu ainda no processo de aclimatação”, enfatiza Leanne Soares, gerente do Parque Arvorar.
Fêmea trazida como fiel depositário colocou seis ovos férteis, dos quais três chocaram.
Associação Caatinga
Esses preparativos foram essenciais para garantir que as aves estivessem fisicamente prontas e com o comportamento adaptado à vida selvagem, diminuindo o estresse e aumentando as chances de sucesso na reintrodução. A escolha do Planalto da Ibiapaba como local para a reintrodução do cara-suja levou em conta a disponibilidade de habitat adequado e as condições de proteção da região.
“As principais ameaças que levaram essa espécie às extinções locais foram os desmatamentos e as capturas. Nessa região, as áreas que melhor reúnem essas condições são a Reserva Natural Serra das Almas e o Parque Nacional de Ubajara. Em cada área foi construído um recinto de aclimatação e levados indivíduos selvagens da serra de Baturité”, explica Fábio.
No entanto, o processo de reintrodução não foi isento de desafios. A aclimatação da espécie a um ambiente que, embora seja o seu habitat natural, apresenta diferenças em sua composição florística em relação ao local original de origem, exigiu um acompanhamento rigoroso. Além disso, a presença de espécies predadoras e a necessidade de garantir que os periquitos encontrassem alimento e abrigo adequados foram fatores que exigiram atenção especial.
A soltura foi realizada de forma gradual, garantindo que os periquitos tivessem tempo para se adaptar ao novo ambiente e aos recursos naturais disponíveis. O processo de soltura branda, como é chamado, é essencial para evitar o estresse e permitir que as aves desenvolvam as habilidades necessárias para sobreviver no seu habitat original.
O periquito-cara-suja é uma ave exclusiva do Nordeste brasileiro que vive em pequenos bandos de 4 a 15 indivíduos
Fábio Nunes/Aquasis
Superados esses obstáculos iniciais, a reintrodução se mostrou bem-sucedida, culminando com a reprodução registrada, um sinal positivo para a sobrevivência da espécie.
“O planalto da Ibiapaba é considerado uma das principais áreas com habitat favorável para o cara-suja. Foi no sopé desta serra, onde um cara-suja cativo, tratado como mercadoria, foi presenteado em 1884 ao naturalista cearense Antônio Bezerra, que relatou ocorrer nos talhados de serra desta região. Neste mesmo planalto, em 1910, a ornitóloga alemã Emilia Snethlage obteve dois exemplares, ambos preservados até hoje no Museu Nacional do Rio de Janeiro”, compartilha Fábio.
Uma conquista significativa
O nascimento dos três filhotes de cara-suja dentro do recinto de aclimatação foi um feito histórico para a conservação da espécie. Essa reprodução não apenas simboliza a adaptação bem-sucedida da ave ao novo ambiente, mas também demonstra que as condições oferecidas pela Reserva são adequadas para a sobrevivência e reprodução do psitacídeo.
“Por ser o primeiro ano de soltura, não esperávamos reprodução delas. Porém, para surpresa geral, ela veio. Isso é um sinal claro de total aclimatação aos ambientes, tanto no processo de reintrodução, quanto ambiental, já que a decisão de investir em reprodução é precedido de condições ambientais e fisiológicas favoráveis”, comenta Fábio.
No Ceará, ações que salvam espécies ameaçadas de extinção, como periquito-cara-suja (Foto: Pedro Santana/TG)
Pedro Santana/TG
Agora, a equipe do projeto segue atenta ao desenvolvimento dos filhotes e ovos. Para Fábio, reintroduzir animais na natureza exige monitoramento constante e enfrentar desafios complexos, mas o nascimento dos filhotes já é um sinal positivo de que os caras-sujas estão se adaptando ao ambiente e podem repovoar a região com sucesso.
Esse feito é fruto de um projeto iniciado em 2024, resultado de uma parceria entre o PARNA Ubajara, o CEMAVE/ICMBio e a equipe da ONG Aquasis, que desenvolveu uma metodologia de reintrodução e acompanhamento da espécie com cuidado, ciência e paixão pela conservação.
Segundo o biólogo da Aquasis, ver os primeiros sinais de reprodução do cara-suja na natureza é algo que emociona profundamente toda a equipe envolvida. “É a natureza respondendo aos esforços de proteção, restauração e acolhimento de uma espécie que, por tanto tempo, esteve ausente de seu lar”.
Os periquitos-cara-suja medem entre 22 e 28 cm e pesam cerca de 58 gramas
Fábio Nunes/Aquasis
“A reintrodução do cara-suja nessa região representa uma reparação histórica e ecológica para esses ambientes tão escassos de psitacídeos, especialmente os florestais. Em 1901, o mesmo naturalista Antônio Bezerra relata sobre ordens de matanças de psitacídeos expressas por leis, por mais de um século, obrigando lavradores a abater essas aves “de bico torto”, por serem consideradas pragas agrícolas, sob pena de multa ou reclusão”, relembra o biólogo.
“Cada ovo posto é símbolo de esperança, de resistência e de que juntos, instituições e sociedade, podemos reverter histórias de perda e escrever novos capítulos para a biodiversidade do nosso país. O futuro do Cara-suja está sendo reconstruído”, finaliza Fábio.
*Texto sob supervisão de Lizzy Arruda
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