Apagão em Portugal: relatos de mulheres do RN em um dia de caos, incerteza e instinto

O escuro tem voz própria. E, nesta segunda-feira (28), Portugal e Espanha pararam para escutá-la. O apagão que atingiu a Península Ibérica durou apenas algumas horas — mas foi o bastante para desarrumar o relógio dos dias e acionar memórias e medos que estavam deitadas no fundo da cabeça. Ficamos sem internet, sem sinal, sem água, sem resposta. E o silêncio não era o de costume: era um corte seco, um apagão que desligava mais do que luz — suspendia certezas. O tipo de silêncio que assusta porque exige presença.

A princípio, tentamos seguir o roteiro automático: checar o celular, atualizar os portais, entender. Mas em poucos minutos, as redes caíram e o País desacelerou. Supermercados fecharam, escolas liberaram crianças, vizinhos apareceram nas janelas. Segundo a União Europeia, o apagão de segunda-feira foi o incidente mais grave na infraestrutura crítica do continente nas últimas duas décadas.

Em meio ao colapso das grandes redes, foram pequenas lojas de produtos chineses que garantiram lanterna, pilha e rádio — os utensílios mínimos e seguros que mantiveram algum fio de comunicação. Quando um botão pode desligar internet, IA e tudo o que parece inabalável, foi a simplicidade analógica que sustentou a sanidade.

Em meio ao caos, algo mais sutil começou a se formar — o gesto de cuidar. E, neste texto, trago breves relatos de mulheres que vieram de longe (do RN) e, com a força do que é aprendido na marra, fizeram da crise uma espécie de costura.

Em Lisboa, Camila saiu de um consultório e encontrou o mundo sem sinais. Foi direto pegar a filha na escola. No caminho, trânsito sem regras, sinais apagados, olhares aflitos. Um mercado asiático virou refúgio: água, pilhas, e o instinto de garantir o que dava. Em casa, o medo era difícil de disfarçar. A filha chorou quando a luz voltou. Chorou de alívio. Chorou porque sabia que algo tinha saído do lugar.

Andreia, em Coimbra, tentou almoçar mas foi puxada para outra cena: clientes confusos num mercadinho às escuras. Acabou ajudando o dono. Pesou frutas numa balança analógica, anotou preços à mão. Ali, viu de perto a dança do improviso e a pressa dos medos pequenos. Cigarros, batatas fritas, doces. Tudo urgente. Tudo simbólico. No fim do dia, o que ficou foi uma lembrança estranha da pandemia. Uma ansiedade que não se explica — apenas retorna.

Em Almada, Manu teve que lidar com a filha de quatro anos achando tudo engraçado — enquanto ela mesma, adulta, tentava conter o pânico. Prateleiras vazias, mercados escuros, lanternas na mão de desconhecidos. Entre galões d’água e boatos de três dias sem luz, Manu olhou para a filha e pensou: “o que estou fazendo aqui?”. Mas respirou. Brincou. Leu histórias. E foi dormir sem jantar, com um tipo de cansaço que não é físico.

Clarissa, em Carcavelos, conseguiu internet até a metade da tarde. Recebia notícias da filha na Suécia. Depois o sinal sumiu e ela chamou os vizinhos. Improvisaram um churrasco e tomaram vinho. Foi a forma que encontrou de seguir. 

Já Rosilene, no Porto, sentiu o medo vir de outra ausência: sem energia, não tinha como cozinhar. Fogão elétrico, tudo fechado. O marido voltou do mercado com pão, alface e latas de atum. Ração doméstica. Sobrevivência leve.

Nalva, também no Porto, reúne vários sentimentos comuns a esse dia: o medo do desconhecido, a falta de informação, a preocupação com os filhos, o susto de não ter como sacar dinheiro. Foi buscando uma lanterna, uma pilha, um sinal de celular, que Nalva se viu costurando o dia com gestos pequenos e decisões urgentes — e reconhecendo, como tantas outras, a fragilidade de um cotidiano baseado em certezas elétricas. 

Todas essas histórias, separadas por cidades, têm um ponto em comum que não aparece no mapa: elas vieram de um lugar onde o improviso é prática cotidiana. Sabem o que é passar calor sem ventilador, o que é racionar água, o que é ficar sem resposta. Por isso, não travaram. Agiram. Cada uma do seu jeito, mas com algo em comum: o reflexo de quem já sabe que, na falta de estrutura, é preciso virar estrutura.

A seguir, compartilho os relatos completos dessas mulheres do RN que escolheram Portugal para viver. Porque às vezes o que falta de luz sobra de lucidez. E o que parece um colapso é, na verdade, uma espécie de espelho.

🟨 Manu Freitas, Jornalista e Pesquisadora. Está em Portugal há três meses.

“Eu havia programado uma série de atividades, mas na hora em que acabou a energia e eu achei que fosse algo rápido, então abri o Google (ainda tinha internet nessa altura) e pesquisei por ‘falta de energia em Almada’, que é a cidade que eu moro, quando atualizou já apareciam várias notícias de fala de energia em alguns países da Europa. Fiquei bem apavorada. 
As pessoas nas ruas não sabiam o que estava acontecendo e começaram a criar várias teorias. Eu  havia feito o kit de emergência como recomendado pelas União Europeia, então eu tinha suprimentos em casa, mas não tinha velas. Então desci pra comprar velas num mercado aqui perto, foi apavorante. 
As pessoas estavam enlouquecidas, não havia mais velas, fósforos, água, pães. As prateleiras de itens básicos de higiene e alimentação estavam vazias. Nessa hora eu me senti em meio a uma guerra. Fui ao próximo mercado na mesma rua mas já havia fechado. Então caminhei mais um pouco e encontrei um mercado todo às escuras, lotado. 
As pessoas andavam pelos corredores com lanternas e havia uma fila gigante. Tinha água e alimentos. Mas fui uma das últimas pessoas que conseguiu pegar galões de água, eu tinha apenas 1 em casa e diante do desespero das pessoas resolvi comprar mais água. Enquanto estava na fila comecei a entrar em pânico com toda a situação, olhei para minha filha de apenas quatro anos e pensei: o que eu vim fazer em Portugal com essa criança? Depois que saí do mercado vim para casa com minha filha e tentei deixar o ambiente o mais tranquilo possível, brincamos a tarde toda, lemos livros na varanda e comemos, mas a apreensão que eu sentia continuava. Consegui conectar-me ao rádio pelo celular e fiquei acompanhando as notícias, isso foi me tranquilizando. Passei o dia comendo comidas prontas porque tudo aqui na casa funciona na eletricidade, então não tive como almoçar ou jantar, fizemos lanches o dia todo. Acho que para Maria foi um dia divertido, ela não tinha dimensão do que estava acontecendo. Para ela, o jantar à luz de velas era uma aventura!
Eu tive muito medo que isso pudesse chegar aos três dias, como muitos na fila diziam. Aprendi o quanto é importante ter um kit, isso me deu segurança e tranquilidade em vários momentos. Eu pensava: “ao menos tenho comida para três dias e água, tenho casa e tudo vai ficar bem”.

<3 Agora estamos bem, passado o susto refleti o quanto somos dependentes da eletricidade, da internet. E o quanto o tempo tem outro ritmo sem essas tecnologias. Ao amigos e familiares de Natal, fiquem tranquilos que o susto passou. Estamos morrendo de saudades de todos e esperando ansiosas pelo nosso reecontro em setembro. Um abraço carinho.”

🟨 Andreia Paiva, jornalista e empreendedora. Vive em Portugal há seis anos:

“Não entendi muito bem o que estava acontecendo. Imaginei ser uma queda de energia comum. Depois, começamos a ser bombardeados com notícias de ciberataque; dentre outras. 
Até entendermos que era algo geral e mais sério, não demorou muito. Eu procurei um restaurante para almoçar, em frente à minha padaria e, na impossibilidade de fazer pão, fui ajudar ao dono do mercadinho da frente, um senhor que estava sozinho e cercado por clientes que chegavam às dezenas. Imagine o sufoco vender hortifrutis e pesar numa balança analógica, anotar preços dos produtos um a um e somar com uma maquininha de pilha! 
As pessoas estavam sobressaltadas e, embora ordeiras, tentavam levar tudo o que pudessem e mais alguma coisa! 
O mais engraçado eram as prioridades: batatas fritas de pacote, cigarros e doces estavam no topo da lista! 
Para mim, o mais complicado foi quando caíram as telecomunicações. Fiquei sem contato com minha filha, que estava na escola, e só consegui falar com meu marido, que trabalha em Lisboa, às 11h da noite. 
Tudo foi meio estranho, trouxe um certo clima de lembrança dos tempos da pandemia. Acho que reacendeu o trauma. Mas, graças a Deus, estamos todos bem! 
<3 Um beijo carinhoso a todos que se preocuparam e enviaram mensagens pedindo notícias!

🟨 Camila Masiso, cantora e empreendedora. Vive em Portugal há oito anos:

“A segunda-feira parecia ser mais um início de semana comum e eu estava em uma consulta quando começaram as notícias. Somente ao sair do consultório médico é que percebi que já estava sem rede no telefone e ouvi o burburinho na recepção. Quando peguei o caminho pra casa é que percebi que era algo sério. Todos os semáforos estavam desligados e o trânsito já estava caótico. Imediatamente me dirigi pra escola da minha filha para levá-la pra casa logo comigo. A escola já estava toda reunida aguardando os pais pois as atividades tinham sido interrompidas. Fomos pra casa e passamos num mercado asiático na minha rua (supermercados já fechados) para compramos água mineral e pilhas, depois disso fomos pra casa. 
Foi muito estressante e angustiante pois não dava pra saber o que estava acontecendo exatamente nem quanto tempo ia durar. Pior ainda foi não conseguir explicar aos familiares no Brasil que ia ficar incomunicável! 
A Lia, que tem 9 anos, também ficou muito aflita e me perguntava toda hora se ia ficar tudo bem e quando tudo estaria normal outra vez. 
Quando o sol se pôs acho que a angústia apertou mais, pois é realmente muito ruim ficar no escuro. 
Quando a luz voltou festejamos e ela chorou aliviada nos meus braços. Foi um grande susto! Espero não passar mais por isso.

🟨 Clarissa Medeiros, é publicitária e empreendedora. Vivem em Portugal há cinco anos:

“Segunda (28) teve muita gente assustada. Claro que é normal ficar apreensivo. Umas poucas horas depois do apagão às 11:00am, fomos ao supermercado e estavam todos fechados. Isso preocupou, também os postos de gasolina. A internet funcionou até as 3:00pm, e fiz contato com amigos em outros países para saber a dimensão do blackout, e avaliar o que podia ser verdade ou não. Nossa filha que mora na Suécia dava informação que via nos veículos de comunicação internacionais enquanto houve sinal, depois perdemos o contato. O que nos restou fazer foi um churrasco, pois não havia como cozinhar nos fogão de indução. Então chamamos os vizinhos e passamos a tarde assim tomando vinhos (que não precisa ser gelado!) e conversando, até chegar a energia no fim da noite. Medo, meeedo não tive. Mas valeu a reflexão de estar mais preparada para situações de emergência. Europeus já passaram por guerras e tem um senso de urgência bem mais aguçado que nós brasileiros, fato. Senti falta de um rádio a pilha e de uma lanterna. Água tínhamos para 02 dias, por acaso. O que fica é levar mais a sério o KIT de sobrevivência que o governo vem sugerindo.”

🟨 Rosilene Pereira, jornalista e escritora. Está em Portugal há quase dois anos:

“Ficar sem sinal nenhum no celular, nem sequer para fazer uma ligação telefônica, e experimentar cerca de doze horas de vida integralmente offline não foi o que me assustou no apagão desta segunda, 28.
O que me deixou realmente apreensiva foi não poder cozinhar. Sim, porque a maioria das residências no Porto, onde vivo, no Norte de Portugal, são equipadas com placas vitrocerâmicas que funcionam com energia elétrica. Em um ano e meio vivendo aqui, vi apenas uma única casa, de uma senhora idosa, que usava um fogão à gás como os tradicionais brasileiros. 
Pensando nisso, meu marido foi ao supermercado  e comprou o último saco de pão restante, um alface e 4 latas de atum, já pensando em um cardápio que pudesse sustentar a nossa família de quatro pessoas por pelo menos dois dias, já que não teríamos como esquentar nem o feijão em conserva da despensa….
A melhor hora foi correr pra varanda de Nalva (estávamos lá) e gritar bem alto, igual fazia na infância na Avenida Sete, no Alecrim, quando eram constantes as quedas de energia: “A energia voltou, êêê!”

🟨 Nalva Melo, empreendedora. Vive há quase seis anos em Portugal:

“As quase 10 horas sem energia foram muito assustadoras, né? Primeiro porque eu tava só em casa, era meu dia de folga, minha filha na escola, e aí eu tava com a TV ligada e ia colocar o meu celular pra carregar. Nesse tempo, desligou a televisão. Fui olhar e vi que as lâmpadas estavam apagadas. Verifiquei o quadro de energia, mas não era nada aqui.
Aí pensei: ‘acho que volta já já’. Passaram cinco minutos, dez minutos, e eu disse: ‘tem alguma coisa errada’. Quando desci do prédio, já tava todo mundo nas calçadas. Foi quando soube que era um problema maior.
Na mesma hora, lembrei que em janeiro tinham falado pra gente montar o kit de emergência. Pensei: ‘meu Deus, eu não tenho nada’. Decidi ir até uma loja de chineses aqui na rua, que vende de tudo um pouco. Quando cheguei, já era uma confusão: as pessoas comprando lanterna, não podia mais entrar. Os funcionários ficavam na porta, e iam buscar o que os clientes pediam lá dentro. Já não tinha mais lanterna.
A dona da loja, que me conhece, olhou pra minha cara de desespero e disse: ‘fica com a minha’. Ela me deu a lanterna dela. Comprei pilha e vim pra casa. Não tinha mais powerbank, já tinham acabado todos. As pessoas estavam comprando rádio, e já não tinha mais nem rádio lá. Eu só pensava: ‘meu Deus, o que é isso? Isso tá muito sério’.
Saí direto pra pegar minha filha na escola. O metrô não estava funcionando, então fui a pé, uns 15 minutos de caminhada. Quando cheguei, graças a Deus ela ainda estava na sala. Mas já estava assustada. Imagina: um monte de adolescente, cada um com uma teoria. Uma dizia que era o apocalipse porque o sétimo papa tinha morrido, outro falava que era um cyber ataque… era tanta coisa!
Falei com ela: ‘filha, não se preocupa. Está tudo tranquilo. Eu tô aqui com você. Eu tô sem celular, por isso vim buscar você, pra gente ficar juntas’. Mas ela perguntava se a gente conseguiria voltar para o Brasil, se precisasse, e eu disse que sim e que era importante manter a calma.
Pensei em ir ao shopping pra comer alguma coisa e carregar o celular, mas estava fechado. Aí começaram os problemas: percebi que eu só tinha uns 10 euros na bolsa e algumas moedas. Passei por um supermercado que estava aberto e tinha caixa eletrônico. As filas estavam enormes. Como eu tinha feito supermercado no dia anterior, comida eu tinha, só não tinha dinheiro em mãos. Quando chegou a minha vez no caixa, a máquina deu erro. Acho que já não tinha mais dinheiro.
Saí de lá e fui até a Casa da Música, onde meu filho trabalha. Lá consegui carregar o celular. Mas na minha cabeça, confesso, passaram várias coisas horríveis. Porque, normalmente, quando começa uma guerra, a primeira coisa que fazem é cortar a energia. Eu não podia falar isso com minha filha, então fiquei tentando tranquilizá-la. Mas pensei em muita coisa: ‘o dinheiro do banco vai sumir, será que isso é um ataque?’. Vários pensamentos intrusos. Mas me concentrei em manter a calma por ela.
Fui pra casa da Rosinha, uma amiga. Depois, viemos aqui pra minha casa e começamos a fazer um churrasco. Ninguém tava conseguindo cozinhar, porque os fogões são elétricos. Sem comunicação, sem saber o que tava acontecendo, foi uma angústia. A gente não entendia nada do que tava realmente se passando.”


👉 Meu nome é Cledivânia Pereira. Sou jornalista de Caicó/RN e escrevo de Lisboa. Neste blog, conto histórias de potiguares espalhados pelo mundo 🌍 — pessoas que, mesmo longe de casa, continuam levando suas raízes no gesto, na fala e na forma de seguir 🌾✈.

Se você conhece alguém do Rio Grande do Norte vivendo fora do Estado que tenha uma boa história para contar, me escreva: [email protected]. Vou adorar saber — e, quem sabe, contar 💌✨.

The post Apagão em Portugal: relatos de mulheres do RN em um dia de caos, incerteza e instinto appeared first on Saiba Mais.

Adicionar aos favoritos o Link permanente.