A ‘gangue dos vovôs ladrões’ que roubou Kim Kardashian sem saber quem ela era

Um dia após o roubo, em outubro de 2016, Yunice Abbas foi para casa dormir.

Quando acordou, sua esposa estava grudada na televisão. A notícia do dia era que a estrela americana Kim Kardashian, então com 35 anos, havia sido amarrada e assaltada à mão armada em um luxuoso hotel em Paris.

Ela teve todas as suas joias, avaliadas em cerca de US$ 10 milhões, roubadas —incluindo o anel de noivado que ganhou do então marido, o rapper Kanye West, que valia US$ 4 milhões.

A mulher de Yunice Abbas olhou feio para ele. “Está na cara que tem dedo seu nisso”, ela reclamou.

Ela tinha razão. O marido, de 62 anos, havia se envolvido em crimes durante toda a vida, desde pequenos delitos até assaltos a bancos.

Assaltar Kim Kardashian, ele escreveu mais tarde em seu livro de memórias, seria seu último trabalho antes de se aposentar.

Mas uma série de erros fez com que o crime estivesse fadado ao fracasso desde o início — e, no início de 2017, três meses após o incidente, Abbas e vários de seus supostos cúmplices foram presos.

Dez deles agora vão comparecer perante um tribunal de Paris durante um julgamento previsto para durar pouco menos de três semanas.

Cinco deles são acusados ??de participar do assalto — e seis de serem cúmplices.

A maioria nasceu na década de 1950, o que levou a imprensa francesa a chamá-los de “vovôs ladrões”.

Abbas e um homem de 68 anos, Aomar Ait Khedache, confessaram; os outros, não.

Um deles morreu, e outro, de 81 anos, será absolvido devido à demência avançada.

Quando o julgamento começar, quase nove anos vão ter se passado desde o assalto.

Ladrões fugiram de bicicleta e a pé

Na noite de 2 para 3 de outubro de 2016, Abbas e quatro cúmplices supostamente vigiaram a suíte discreta de Kardashian no Hotel de Pourtalès, no elegante bairro de Madeleine, em Paris, perto da Praça Vendôme.

Por volta das 3h da manhã, eles invadiram o saguão do hotel, vestidos como policiais e portando uma arma.

Eles ameaçaram e algemaram Abderrahmane Ouatiki, um estudante de doutorado argelino que costumava trabalhar como recepcionista noturno, e o levaram para o quarto de Kardashian.

Ela estava descansando na cama, após ter participando dos eventos da Semana de Moda de Paris, quando ouviu passadas fortes subindo as escadas.

Ela telefonou para a irmã Kourtney e a estilista Stephanie — mas quando elas não atenderam, entrou em pânico.

“Eu sabia que era alguém que estava atrás de mim”, ela relembrou anos depois em uma entrevista ao jornalista americano David Letterman. “Você sente.”

Kim ligou para 911, mas o número de emergência, claro, não funcionava fora dos Estados Unidos.

Enquanto ligava para seu então segurança, Pascal Duvier, que havia acompanhado sua irmã a uma boate, os homens invadiram o quarto, empurraram ela sobre a cama e começaram a gritar.

“Eles ficavam dizendo: ‘O anel, o anel! Eu estava tão em choque que não entendia nada”, contou ela a Letterman.

A barreira da língua obrigou Ouatiki a atuar como intérprete.

Eles encontraram o anel, e o colocaram dentro de uma bolsa junto com outras joias, além de 1.000 euros em dinheiro vivo. Um dos homens a agarrou e puxou em sua direção.

Como estava usando um roupão sem nada por baixo, Kim achou que ele iria atacá-la, disse ela a Letterman, enxugando as lágrimas.

Mas, em vez disso, o homem a amarrou com fita adesiva, e a deixou no banheiro.

Em seguida, ele e o restante dos assaltantes fugiram de bicicleta e a pé. Kim se libertou das amarras e, pouco tempo depois, seu segurança apareceu.

Traumatizada, Kardashian prestou depoimento à polícia francesa naquela madrugada — e voltou aos Estados Unidos ao amanhecer.

Só mais tarde naquele dia, quando Abbas viu a notícia na televisão ao lado da esposa, ele entendeu quem era a vítima.

“Houve plantão de última hora informando que Kim Kardashian havia sido assaltada à mão armada; para você ver quão importante era”, afirma KJ Matthews, jornalista de entretenimento de Los Angeles.

Assalto condenado ao fracasso desde o início

“Todos eram fascinados por ela, sua família e sua ascensão à fama… Quando o roubo aconteceu, ficamos chocados. Como os ladrões conseguiram chegar tão perto dela?”, conta Matthews.

Embora tenham sido cometidos erros em relação à segurança de Kardashian, também houve falhas graves por parte dos ladrões.

“Eles não levaram em conta os avanços nas técnicas policiais, que agora conseguem encontrar microvestígios de DNA em qualquer lugar”, diz Patricia Tourancheau, repórter criminal e autora do livro Kim et les papys braqueurs (“Kim e os vovôs ladrões”, em tradução livre), um relato abrangente do roubo e das vidas dos assaltantes.

“Quando eles se disfarçaram de policiais, pensaram: ‘É isso, ninguém vai conseguir nos reconhecer'”, acrescenta.

Mas em 2016, Paris ainda estava se recuperando dos ataques terroristas do ano anterior, e havia inúmeras câmeras de segurança por toda a cidade, o que permitiu à polícia localizar os ladrões e vê-los fugir com as joias.

Outros detalhes desta história sugerem que o planejamento dos ladrões foi bastante aleatório. Ao fugir do local de bicicleta, Abbas tombou, deixando cair uma bolsa com joias.

No dia seguinte, uma mulher que passava pelo local encontrou um colar incrustado de diamantes, e usou a joia no trabalho o dia todo antes de assistir ao noticiário e se dar conta da origem.

A polícia prendeu Abbas e várias pessoas em janeiro de 2017, e depois confirmou que os ladrões estavam sendo vigiados havia várias semanas, depois que vestígios de DNA deixados na cena do crime levaram a Aomar Ait Khedache, também conhecido como “Omar, o Velho”.

A imprensa francesa publicou uma foto da operação policial, que mostra vários homens tomando café e conversando em um café parisiense naquele inverno, pouco antes da prisão.

A questão que permanece, e sem dúvida será explorada durante o julgamento, é como a gangue ficou sabendo da agenda das Kardashian.

Documentos judiciais aos quais a BBC teve acesso mostram que tanto Khedache quanto Abbas disseram que todas as informações de que precisavam foram postadas online pela própria Kardashian, cuja carreira é baseada em compartilhar detalhes sobre sua vida.

Mas como o bando sabia que na noite de 2 de outubro, Kardashian estaria sozinha em seu quarto, sem seu segurança?

De acordo com os documentos, a polícia acredita que Gary Madar — cujo irmão, Michael, era dono de uma empresa fornecia transporte e táxi para as Kardashian há anos — foi cúmplice do roubo ao compartilhar informações sobre o paradeiro de Kim.

Madar foi preso em janeiro de 2017. Seu advogado, Arthur Vercken, refutou veementemente as acusações, dizendo à BBC que “desde o início, o processo foi baseado em suposições, teses e teorias, mas nunca encontraram nenhuma prova [da participação de Madar]”.

Ele acrescentou que, embora os irmãos Madar tenham trocado mensagens sobre as Kardashian durante a Semana de Moda, foi simplesmente porque estavam “entediados” — e que, quando o assalto ocorreu, Gary estava dormindo.

O irmão de Gary, Michael, não é réu.

“Cinco homens fizeram isso. Você acha que um deles não estava de olho em quem entrava e saía do hotel?”, questionou o advogado, sugerindo que Madar só havia sido preso “para provar que o sistema judiciário francês funciona”.

O julgamento também vai tentar determinar onde as joias foram parar.

O rastreamento dos telefones da gangue pela polícia mostrou que logo após o assalto, Omar, o Velho, viajou de Paris para Antuérpia, na Bélgica, onde 50% dos diamantes lapidados e 80% dos diamantes brutos do mundo são vendidos, de acordo com o Diamond Investment Office.

Muitas joias teriam sido fundidas ou fragmentadas e vendidas. Abbas recebeu 75 mil euros; outros, muito menos.

Quanto ao anel de noivado de Kim, Omar, o Velho, disse que o bando estava com muito medo de vendê-lo, pois seria facilmente rastreável. Ele nunca foi encontrado.

Sem dúvida, Kim ficou assustada com o incidente, que marcou o início de seu hiato nas redes sociais.

Em um episódio do reality show Keeping Up With The Kardashians, ela relembrou em meio a lágrimas a noite do roubo, e disse que temeu por sua vida; mais tarde, ela também afirmou que o assalto a havia tornado uma “pessoa menos materialista”.

Logo após o incidente, sua irmã Khloe disse ao programa The Ellen DeGeneres Show que, por motivos de segurança, a família Kardashian estava fazendo algumas mudanças em relação às postagens nas redes sociais.

“A maior mudança foi sua equipe de segurança”, diz KJ Matthews à BBC.

‘Estão diante de uma grande celebridade, e nem sequer sabem quem ela é’

Patricia Tourancheau, autora do livro sobre o assalto, disse que ficou “fascinada” com o “encontro entre esses ladrões da velha guarda da periferia parisiense, e essa estrela global das redes sociais”.

“Eles fugiram de bicicleta, e ela voa em jatos particulares”, ri a jornalista.

“Trata-se de um grupo de ladrões idosos e decadentes, que estão sempre falidos, sempre envolvidos em planos complicados… e estão diante de uma grande celebridade, e nem sequer sabem quem ela é.”

Segundo ela, a gangue não era de “elite”, como foi sugerido inicialmente.

“Não são a nata do banditismo francês. São um bando de fracassados, na verdade. São o mesmo tipo de gente que, nas décadas de 1960 e 1970, assaltava bancos ou agências dos correios e que, depois, se voltou para o tráfico de drogas e, em seguida, para as joias, porque era mais fácil”, explica.

Por volta de meados de maio, Kim vai encarar os suspeitos pela primeira vez em anos, quando ela se apresentar como testemunha no julgamento.

Não são permitidas câmeras nos tribunais franceses, mas sua chegada ao tribunal, na Ile de la Cité, por si só, inevitavelmente vai provocar o mesmo frenesi midiático que a acompanha há mais de uma década.

Em seu livro de memórias, Abbas afirmou esperar que o status da vítima e a repercussão global do caso não influenciem indevidamente os juízes.

No entanto, ele também disse que, no último dia do julgamento, levaria uma sacola com seus pertences, pronto para ser enviado para a prisão.

“O problema com o passado”, ele escreveu, “é que ele permanece com você enquanto estiver vivo.”

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