Ilê Axé Opô Afonjá celebra o centenário de Mãe Stella de Oxóssi

Em 1986, Mãe Stella de Oxóssi aproveitou a viagem a Nova York, onde participaria da III Conferência Mundial da Tradição dos Orixás e Cultura, para iniciar desde o exterior a sua campanha contra o sincretismo religioso. Era a resposta vigorosa e possível contra os ataques que o povo de santo sofria na Bahia ao entrar em igrejas católicas e ouvir, por exemplo, que não se podia servir a Deus e ao diabo.Em uma entrevista concedida décadas depois à TV Ufba, Mãe Stella fez questão de afirmar que nunca serviu ao diabo e que sentiu ser necessário o afastamento entre as duas crenças. Uma aproximação, aliás, que foi historicamente forçada pelos colonizadores europeus escravagistas, que impediam o povo africano de cultuar seus deuses em solo brasileiro.A perseguição da Igreja ao Candomblé era particularmente dolorosa para essa líder religiosa que, órfã aos sete anos, foi criada pela tia, estudou em escola católica e foi iniciada no Ilê Axé Opô Afonjá aos 14 anos, sem ter noção do que queria fazer da vida, como revelou no documentário. Mas a vida a levou muito mais longe do que ela poderia eventualmente imaginar.Maria Stella de Azevedo, que completaria 100 anos de idade na próxima sexta-feira, dia 2 de maio, tornou-se uma das mais respeitadas personagens da vida cultural e religiosa do Brasil, símbolo da emancipação feminina e a primeira mulher negra a se tornar imortal na Academia de Letras da Bahia.Primeiro Obá confirmado por Mãe Stella no Ilê Axé Opô Afonjá e seu sucessor na cadeira 33 da Academia de Letras da Bahia, o professor, jornalista e escritor Muniz Sodré destaca que a religiosa manteve a tradição das ialorixás do terreiro. “Ela seguiu o caminho de Mãe Aninha, uma pessoa culta, que foi a primeira mulher a participar de um congresso afro-brasileiro, nos anos 30”, diz o professor, destacando que esse terreiro sempre foi um abrigo de intelectuais. “Quando Sartre e Simone de Beauvoir estiveram na Bahia, acompanhados por Jorge Amado, passaram um dia no Ilê Axé Opô Afonjá”.Sobre a figura de Mãe Stella, o acadêmico enaltece a sua força feminina e ressalta o fato de ela ter se formado em enfermaria e de ter sido escritora de livros, como fundamento da sua indicação para a ALB, além da sua importância como líder religiosa.Sodré destaca que o orixá de Mãe Stella era Oxóssi e a relação dessa entidade com os dias atuais. “É um princípio cosmológico que a meu ver é importante nesses tempos cinzentos que parecem prenunciar o fim do mundo. Oxóssi é um orixá de mira tão aguçada que apaga o sol com a flecha. É isso que o grego antigo chamava de eustochia. A mirada certeira e penetrante quando se está em uma situação crítica”, compara o professor, que participa no dia 29 de maio de uma sessão solene na ALB, em homenagem à ialorixá.”Mãe Stella tinha essa mirada crítica. Ela viu o tempo dela e entendeu a história da opressão que o negro sempre sofreu”, avalia o professor, ressaltando que junto com outros nomes, como Mãe Menininha e Mestre Didi, Mãe Stella integra uma história paralela do Brasil, que está emergindo apenas agora.”Essas pessoas ocupam o primeiro plano quando nós falamos de ancestralidade, mas também daquilo que a filosofia alemã chama de ética social imediata, ou seja, o comportamento”, pontua o professor.Atual ialorixá do Ilê Axé Opô Afonjá, Mãe Ana de Xangô, que é pedagoga, ressalta o papel educador de Mãe Stella. “Ser ialorixá é educar os filhos a como se comportar dentro desse espaço sagrado. E Mãe Stella fez isso com dignidade, caráter e empoderamento, mostrando que o Candomblé é uma religião de valores”, afirma a sexta matriarca do terreiro, que assumiu o posto em 16 de junho de 2022, três anos após a morte de Mãe Stella. “Ler e escrever é conhecimento. E nada melhor para falar de Mãe Stella do que se falar em leitura e escrita”, afirma Mãe Ana.Por iniciativa de Mãe Stella, em parceria com a Prefeitura de Salvador, a creche que funcionava desde 1978 no terreiro, em São Gonçalo do Retiro, foi transformada em 1986 na Escola Municipal Eugênia Anna dos Santos, nome da fundadora do Ilê Axé Opô Afonjá, e hoje atende 250 crianças da comunidade.O terreiro possui ainda uma biblioteca e o Museu Ilê Ohun Lailai, criado em 1982 com objetos da cultura iorubá. O museu foi idealizado por Mãe Stella após uma viagem à Nigéria, onde conheceu um equipamento similar.Mãe Ana ressalta a importância de sua antecessora como intelectual e sua luta contra a intolerância religiosa. “Eu me coloco, nessa posição que hoje estou, de líder religiosa, com essa responsabilidade, de levar essa casa, esse legado e esse impacto”, afirma a ialorixá.OrganizaçãoA organização das atividades em homenagem ao centenário de Mãe Stella no terreiro estão a cargo de Mãe Ana e de Emanuel Antonio Santos Nascimento, presidente da Sociedade Beneficente Cruz Santa do Axé Opô Afonjá, o braço civil do terreiro, que administra a estrutura leiga.Uma curiosidade é que a sociedade foi criada em 1931, quando Mãe Aninha procurou o cartório para registrar o terreno do terreiro em nome de Xangô e ficou sabendo que não seria possível. No documentário da TV Ufba, Mãe Stella conta que Mãe Aninha não quis registrar o terreno em seu nome prevendo a possibilidade de ela se afastar do terreiro.A respeito das homenagens, Emanuel afirma que o terreiro fará uma programação extensa: “Nós teremos eventos na Câmara Municipal e no Congresso Nacional, porque ela foi uma pessoa bastante conhecida, tanto nacional quanto internacionalmente”.Sobre o seu convívio com Mãe Stella, Emanuel aponta uma grande reverência à antiga ialorixá. “O carinho e o respeito que eu tinha por ela eram iguais aos que eu tinha pela minha mãe. Até um não ou um carão dela eu tomava como ensinamento. Tudo o que acontece comigo, até coisas ruins, para mim é axé”, afirma.No terreiro, o lançamento da programação do centenário e as homenagens a Mãe Stella começaram ontem e se estendem até dezembro. No dia 2 de maio, dia do aniversário, às 18 horas, o terreiro realiza uma solenidade com a presença de autoridades.Em setembro, deve ser lançado um livro sobre a líder centenária. Um projeto do terreiro que está sendo tocado por três professores da Ufba: a cientista da computação Maria Dulce Paradella de Matos Oliveira, a historiadora e arquivologista Maria Teresa Navarro de Brito e o licenciado em Letras Sérgio Ribeiro da Silva, todos do Instituto de Ciências da Informação.

|  Foto: Fernando Amorim | Cedoc A TARDE

LetrasNo âmbito da Academia de Letras da Bahia, o dia do centenário será marcado pela Abertura do Ano Comemorativo do Centenário de Mãe Stella de Oxóssi. Nesse dia, será lançado o Instituto Mãe Stella de Oxóssi, que não nasce com sede própria e funcionará provisoriamente na residência do músico e publicitário Adriano Azevedo, sobrinho da ialorixá.”O projeto surgiu através de uma conversa há um tempo com uma grande amiga, que me deu esse toque. Como estamos no centenário, eu decidi tentar, porque Tia Stella era alguém que prezava muito pela educação. Fazer o instituto é bem a cara dela. Se ela tivesse aqui, apoiaria”, aponta Azevedo.No ano passado, o músico conseguiu despertar o interesse de uma amiga do setor cultural, cujo nome ele não está autorizado a dizer, que lhe mostrou possibilidades para viabilizar o instituto. A reportagem tentou falar com essa amiga, mas ela preferiu não dar entrevista. Um dos caminhos apontados foi a parceria com a ALB, com quem ele vai assinar na próxima sexta um protocolo de intenções.Presidente da ALB, o poeta e escritor Aleilton Fonseca considera que Mãe Stella foi uma acadêmica exemplar. “Ela contribuiu com a sua presença, com a sua importância e a academia celebra o seu centenário como a ialorixá que representa as tradições profundas da formação do povo baiano e brasileiro, e a importante escritora que representa as tradições do povo baiano”, afirma Aleilton.Mãe Stella escreveu nove livros, sendo o último A Ialorixá e o Pajé, editado pela Solisluna, que resgata o trabalho da enfermeira sanitarista Maria Stella Azevedo na década de 1950, bem antes de se tornar a guardiã do Ilê Axé Opô Afonjá. Havia nessa época uma pandemia de gripe asiática e Stella era enfermeira-visitadora. Ela ia de casa em casa orientando as pessoas como proceder.”Em uma das casas, ela encontra uma pajelança feita em um curumim que estava com a gripe. Ela ficou muito interessada, fez amizade com o pajé eles trocaram informações sobre os usos das plantas indígenas e as afro-brasileiras”, explica Enéas Guerra, ilustrador, editor do livro e amigo que se fez muito presente em visitas mútuas nos últimos anos de vida de Mãe Stella.Uma outra iniciativa prevista em homenagem a Mãe Stella é o lançamento, ainda este ano, do livro De Benedicta & Tibério à Mãe Stella de Oxóssi: a vida em tempo de viver 1850-2025, do historiador Diego Copque. Ele pesquisou documentos do Arquivo Público do Estado da Bahia e do Arquivo Público Municipal. “Não é um trabalho de genealogia, mas de contextualização da ancestralidade”, afirma Diego. A pesquisa aponta que os bisavós maternos de Mãe Stella tornaram-se escravos de ganho e conseguiram a alforria.

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