Mostra ‘Ecos Indígenas’ segue com obras que desafiam estereótipos e limitações

Da pintura corporal à fotografia, da moda à música, os povos indígenas têm transformado a arte em ferramenta de memória, resistência e afirmação. Seus grafismos, traçados no corpo e na cultura, narram histórias silenciadas e denunciam séculos de apagamento. Hoje, essas expressões se renovam em novas linguagens, reafirmando identidades e ampliando vozes que sempre estiveram presentes – mas que, por muito tempo, foram invisibilizadas.Até o dia 30, o Museu de Arte Contemporânea da Bahia (MAC-BA) oferece a exposição Ecos Indígenas com obras de nove artistas originários do Nordeste. Os artistas participantes são Elis Tuxá, Jorrani Pataxó, Kelner Atikum Pankará, Mamirawá, Raiz Lima, Renata Tupinambá, Thiago Tupinambá e Célia Tupinambá.A curadoria é de Mateus Estrela e Nadja Miranda, que propuseram, desde o início, uma ruptura com lógicas excludentes. O objetivo foi descolonizar os critérios curatoriais que, historicamente, limitaram a forma como a arte indígena é percebida e classificada. “Evitamos os enquadramentos que historicamente marginalizam essas produções, rotulando-as como ‘naïf’, ‘folclóricas’, ‘artesanais’ ou ‘populares’”, afirma Mateus Estrela.“Essas categorias, usadas de forma redutora, silenciam a potência estética, política e simbólica dessas obras e contribuem para o apagamento sistemático das contribuições indígenas na construção cultural do Brasil”, completa.A programação inclui oficinas musicais, uso de ervas tradicionais e pintura corporal. Na última sexta-feira (25), o evento se expandiu para o cinema com a exibição do filme Caminhada Tupinambá, dirigido por Maurício Galvão. Ontem (26), foi realizada uma oficina de fotocolagens indígenas com a artista Mamirawá.“A fotografia é uma forma de registro, mas também de poder. Precisamos usá-la a nosso favor. Ainda existe, nos livros e na mídia, uma imagem engessada de como ‘deveria ser’ uma pessoa indígena. Mas resistir também é ser múltiplo. Cada um vive sua cultura de forma única. A fotografia, pra mim, é isso: dizer ‘estamos aqui’, mostrar a riqueza da nossa diversidade”, afirma Mamirawá.Hoje também acontece a Feira de Artesanato Indígena, que se torna um espaço de encontro entre tradição, arte e resistência. “Esta exposição tem uma importância profunda para o público soteropolitano, pois promove um reencontro necessário com as raízes indígenas que compõem, de forma indelével, a identidade cultural da cidade e do Brasil. Em um território marcado por múltiplas ancestralidades, abrir espaço para a arte indígena é um gesto de reconhecimento, reparação histórica e afirmação de uma presença que sempre existiu, mas que muitas vezes foi invisibilizada”, diz o curador.O poder da arte indígenaEm cada região onde vivem os povos indígenas, a expressão cultural se manifesta em diálogo com o bioma, por meio de um artesanato profundamente conectado aos recursos que a natureza oferece. A poucos quilômetros de Salvador, está localizada a aldeia Tupinambá de Abrantes, em Camaçari, território indígena ainda não demarcado oficialmente, reconhecido apenas por seus próprios habitantes.É ali que a cacica Renata Tupinambá, de 41 anos, tem buscado ressignificar a história de seu povo por meio do grafismo indígena aplicado em telas. “Nosso grafismo tem uma importância muito grande. Vivemos num lugar onde o rio encontra o mar, é a mistura da água doce com a água salgada, esse balanço das águas que representa muito da nossa identidade”, afirma Renata.Essa história, contada por Renata pela pintura, está na mostra. “É importante falar sobre o grafismo que representa a nossa aldeia. E, mais uma vez, falar da nossa aldeia e do grafismo presente nas minhas obras expostas é também falar do que significa o balanço das águas, esse encontro que está no nosso território e na nossa espiritualidade”.

|  Foto: Divulgação

A Bahia abriga a segunda maior população indígena do Brasil: 229.103 pessoas se autodeclaram indígenas, o equivalente a 13,5% da população indígena do país, segundo o Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2022. Destas, 27.740 vivem em Salvador. Em todo o estado, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) reconhece oficialmente 14 povos, enquanto o movimento indígena identifica 32.É nesse contexto de diversidade e resistência que a fotógrafa e psicóloga indígena Elis Tuxá apresenta duas obras na exposição, profundamente ligadas ao território e à memória ancestral. “Essas obras nasceram de um processo que é também político e afetivo. Elas representam meu vínculo com o território não só como espaço físico, mas como corpo, existência e ancestralidade. São um gesto de retorno às raízes e de continuidade das nossas narrativas”, afirma.A presença dessas imagens na exposição carrega um significado potente. “É um gesto político ocupar esse espaço, um dos mais importantes da Bahia, com vozes que historicamente foram marginalizadas ou exotizadas. O museu se torna, assim, um território de retomada, escuta e visibilidade. Nós estamos aqui, produzindo, pensando, criando”.“Fotografar com um olhar indígena é subverter os estereótipos que nos foram impostos. É colocar nossos corpos e espiritualidades no centro da narrativa. É registrar o que não pode mais ser apagado e imaginar o futuro com novas imagens”, define.Diferentes linguagensAlém de ministrar a oficina de fotocolagens indígenas, Mamirawá exibe três obras na exposição. Entre as imagens selecionadas, destacam-se Amor Originário e Príncipe Guia, feitas durante o Encontro Nacional de Estudantes Indígenas (ENEI), em 2023, no território Potiguara, Paraíba. As imagens retratam corpos em movimento e momentos de afeto. “Essas imagens falam sobre uma dimensão mais subjetiva da nossa existência. Elas não retratam necessariamente um povo específico, mas carregam a presença do movimento indígena – no corpo, no gesto, na energia. Hoje em dia, tem crescido a representatividade do amor negro, por exemplo. Mas o afeto entre povos indígenas ainda é muito invisibilizado. E esse lugar do afeto também é resistência, é importante. A gente luta, sim, mas também ama, também precisa de carinho, de cuidado. Somos seres humanos”, pondera a artista.A estudante da Escola de Belas Artes da Ufba, Kelner Atikum Pankará, leva ao MAC-BA um pouco dos povos indígenas do sertão de Pernambuco. Ela apresenta três obras que combinam ancestralidade, espiritualidade e experimentação: a isogravura A Carranca, uma instalação, Encantaria, composta por uma máscara feita com panela de barro e cocar de caruá, e a escultura em relevo A Rezadeira, moldada em uma placa de gesso. Para ela, estar em uma exposição como esta é também um chamado por inclusão contínua: que os artistas indígenas sejam convidados para mostrar seu trabalho não apenas em abril, mês dedicado aos povos originários, mas em todas as pautas e projetos. “Nós, indígenas, estamos em diversas áreas profissionais e que nos chamem para trabalhar no Abril Indígena, mas também fora do Abril Indígena. Em projetos a respeito dos povos indígenas, mas também projetos outros”, finaliza.Exposição Ecos Indígenas / Até quarta-feira (30) / MAC-BA / Gratuito*Sob supervisão do editor Chico Castro Jr.

Adicionar aos favoritos o Link permanente.