Discutir e preservar as histórias da comunidade LGBTI+: é esse um dos maiores objetivos do trabalho de Nilton Milanez. Escritor, pesquisador e professor da Universidade do Estado da Bahia (Uneb), ele se dedica há décadas à área de sexualidades. Agora, dá um novo passo nesse trabalho, com a criação do Clube de Leitura: Literatura LGBTI+ Independente da Bahia, que debaterá mensalmente obras produzidas por autores queer baianos ou que abordem temas voltados para a comunidade.Os encontros começam hoje, às 10h30, no Museu de Arte da Bahia (MAB), com entrada gratuita. Basta fazer a inscrição através do formulário disponível no Instagram de Nilton (@nilton_milanez).A iniciativa faz parte do Projeto de Extensão “Leitura de narrativas sobre as (homo)sexualidades no Brasil”, coordenado por Milanez na UNEB há quatro anos. Como os encontros aconteciam sempre de forma on-line, o professor decidiu buscar outro rumo para a ação, ampliando-a ainda mais. A resposta foi positiva: a ideia do clube de leitura foi acolhida prontamente pelo MAB, que será a casa do projeto pelos próximos meses.“Eu acho muito legal estarmos ocupando esse espaço do museu, porque a gente realmente alia o que é feito na universidade e a comunidade externa. Isso mostra como o que a gente produz na universidade realmente atinge outros espaços. E é isso que eu quero mesmo: eu quero que a gente possa estar lá discutindo sobre a literatura LGBTI+ baiana e independente em bibliotecas, nas escolas, nas praças, e também em outros espaços culturais. É para isso que vou lutar ao lado desse grupo”, afirma Milanez.Ao longo do ano, o grupo discutirá obras dos mais diversos temas e estilos. Quem participar vai se deparar com poesia, crônicas, contos, realismo fantástico, estudos acadêmicos, literatura de denúncia social etc. Tudo para acolher a maior quantidade de autores e mostrar como é diversa a produção LGBTI+ da Bahia.Para Milanez, o clube de leitura é uma iniciativa simbólica enquanto professor e pesquisador, mas sobretudo com o Nilton a nível pessoal, um homem gay de 60 anos. “Eu fui uma criança gay no período da ditadura. Eu não sabia que eu era gay com essa palavra, com esse nome, mas sabia que tinha um sentimento que era proibido e que era interditado pela própria ditadura. Na televisão, por exemplo, nos programas humorísticos, o ‘bicha’ sempre era um lugar de chacota, e eu me reconhecia naquele lugar. Então, esse trabalho acadêmico é primeiro da criança Nilton, que não pôde pensar, falar e reconhecer a própria sexualidade como um lugar possível de vida”, diz.Quando viu a proposta do clube nas redes sociais de Nilton Milanez, Yara Fers não hesitou em participar. Escritora bissexual, ela tem 12 livros publicados, e já traz a bissexualidade como tema e característica de personagens há certo tempo, tanto na prosa como na poesia. “Acho que a criação de clubes como este impulsiona a leitura dessas autorias, motiva quem lê a conhecer, inclusive, as pessoas autoras LGBTI+ aqui da Bahia, que escrevem obras muito diversas, de prosa, poesia, não-ficção. E são vozes que ficaram por muito tempo silenciadas na literatura. É preciso que haja uma escrita mais diversa ocupando espaços, e que ela também seja mais lida e debatida. Esse clube vai ajudar muito nisso”, comenta.Palavra que acendeA visão de Yara ecoa entre outras pessoas autoras que participarão dos encontros. Para Rozin Daltro, o projeto é uma forma de resistência. Enquanto escritor não-binário, sempre viu a literatura como uma forma de existir sem pedir licença, e agora encontra no Clube de Leitura a oportunidade de discutir seu trabalho e de outros autores da comunidade LGBTI+ de coração aberto: para expor ideias, mas também para aprender e expandir a visão de mundo a partir das obras de outros autores.“Cresci num mundo que tentou me convencer de que minha voz não importava por ser bicha, por ser do interior, por viver com HIV. Mas eu insisto em dizer, em escrever, em deixar rastro. Não acredito que a escrita deva ser um privilégio acadêmico. Quem vive, quem sente, quem resiste, também tem o que dizer. E o projeto me atravessa justamente por isso: porque não trata leitura e escrita como luxo, mas como ferramenta de luta, de partilha, de reconstrução. Ele conversa com o que faço porque também acredita que palavra na boca de bicha, de travesti, de sapatão, de gente preta, de gente viva, é palavra que acende o mundo”, defende.Para além de um espaço em que leitores LGBTI+ e aliados se encontram e discutem as obras dos mais diversos estilos, o clube de leitura também é uma grande chance de ampliar o alcance do trabalho de pessoas autoras que fazem parte da comunidade e abordam temas relacionados a ela. Os livros discutidos estarão sempre disponíveis para que os participantes adquiram na hora do encontro. É como uma virada de chave: a construção, pouco a pouco, de um lugar seguro que por muito tempo foi um sonho distante.“A gente sempre escreveu, sempre produziu, mas quase nunca teve onde escoar. O que existe hoje é fruto de muita luta, de resistência contra o silenciamento, contra o estigma que tentam colar na gente. Então, saber que há um espaço voltado ao diálogo entre autores e leitores da própria comunidade é mais do que necessário: é urgente. Porque não se trata só de literatura, mas de romper com a lógica de que nossas narrativas são marginais, menores ou de nicho. Aqui, podemos falar sem traduzir nossa dor, sem suavizar nossa vivência. Podemos existir por inteiro, sem moldar o discurso pra caber no que esperam de nós”, afirma Rozin.Muitas edições ainda estão por vir, mas Milanez já tem outro objetivo em mente para o fim do ano: organizar um livro digital de crônicas, poesias, tirinhas e ilustrações, com todos os participantes. “Mesmo quem não seja autor ou não tenha publicado nada na temática LGBTIA+, vai ter um espaço aqui para fazer essa publicação. Eu vou proporcionar a partir do selo editorial Bambi Brasil SA essa publicação até o final do ano, e esse vai ser o último livro que a gente vai discutir em 2025”, afirma.Encontros do Clube de Leitura de Literatura LGBTI+ Independente da Bahia / A partir de hoje, 10h30 / Museu de Arte da Bahia (MAB) / Gratuito*Sob supervisão do editor Chico Castro Jr.
Clube de Leitura LGBTI+ inicia encontros mensais em Salvador
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