Adeus, Bofélia: Edy Star deixa legado insubstituível

Ontem, o Brasil perdeu o último membro ainda vivo de um clube muito especial: o juazeirense Edy Star, que figurou ao lado de Raul Seixas, Miriam Batucada e Sergio Sampaio no antológico álbum Sociedade da Grã-Ordem Kavernista Apresenta: Sessão das Dez (CBS, atual Sony, 1971). Primeiro cantor brasileiro a se assumir homossexual (ele não gostava do termo ‘gay’), Edy morreu aos 87 anos, no Complexo Hospitalar Heliópolis, em São Paulo, após sofrer um acidente doméstico há uma semana.Nota divulgada pela assessoria de imprensa do cantor informa que Edy morreu de insuficiência respiratória, insuficiência renal aguda e pancreatite aguda. O texto diz ainda que o cantor morreu “de forma serena, sem dor, enquanto recebia tratamento médico”. O velório e o enterro são hoje, das 10h às 13h, no Cemitério do Araçá, em São Paulo.Nascido Edivaldo Araújo de Souza, em 1938, filho de um escriturário com uma dona de casa, Edy é um daqueles casos em que, desde cedo, já se podia dizer que ele havia “nascido artista”. Em 1951, aos 13 anos, a família já morando em Salvador, Edy ingressou na Hora da Criança, instituição educativa criada pelo jornalista Adroaldo Ribeiro Costa.Profissionalizou-se em 1963, depois de – para desespero familiar – largar um emprego na Petrobras para – literalmente – fugir com o circo. Viajando pelo interior e outros estados do Nordeste, engajou-se, em Recife, no musical Memórias de 2 Cantadores, atuando com Naná Vasconcellos e Geraldo Azevedo. A peça foi aclamada e premiada. Na volta, começou a trabalhar na TV Itapoan. Produziu e apresentou os programas Sabatina da Alegria e Poder Jovem.Atuando na TV Itapoan ao lado da jornalista Domitila Garrido, celebrizou-se na mídia da época. Foi demitido ao cobrar o pagamento do salário em pleno ar, então atrasado há três meses. Foi acompanhado pelo próprio diretor da emissora até a rua, na mesma hora: “Nunca mais pise aqui!“ Na chuva, do lado de fora, Edy não perdeu o rebolado. ”Mas você vai pagar, né?”, gritou, com as mãos na cintura. “Eu sei que, dois dias depois, o dinheiro saiu“, contou Edy, aos risos, em entrevista à revista Muito, do jornal A TARDE, publicada em 11 de julho de 2010.

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‘Sweet Edy’

|  Foto: Divulgação

Enturmado com Raul Seixas (que o chamava de Bofélia) e o povo do rock ‘n’ roll da época, aceitou o convite de Raulzito e se mandou para o Rio de Janeiro, onde participou do álbum Sessão das Dez, gravado durante as férias do diretor da gravadora. Vanguardista e anárquico, o LP foi polêmico. Consta que a matriz norte-americana da gravadora, quando tomou conhecimento da obra, enviou um famoso e monossilábico telegrama para a filial brasileira: “What‘s this?“ (O que é isto?).No álbum, Edy canta duas músicas: a faixa-título Sessão das Dez (de Raul Seixas, possivelmente seu maior sucesso, com os imortais versos “Ao chegar do interior / inocente, puro e besta) e Eu não Quero Dizer Nada (de Sérgio Sampaio).Caótico – ainda que genial – o LP foi recolhido das lojas. Em plena ditadura militar, o veto veio de onde menos se esperava. ”O disco saiu, as músicas foram liberadas pela Censura Federal e gravadas. A censura veio da própria gravadora”, lembrou Edy em 2010.O episódio fez barulho e Edy ganhou musculatura para começar a fazer shows solo no estilo que mais amava: cabaré, com música, humor e muita performance.Em 1974, contratado pela Som Livre, lançou sua estreia solo: Sweet Edy, em que canta composições criadas exclusivamente para ele, pela elite da MPB: Roberto e Erasmo Carlos (Claustrofobia), Gilberto Gil (Edyth Cooper), Caetano Veloso (O Conteúdo), Jorge Mautner (Olhos De Raposa), Moraes Moreira e Galvão (O Que Der na Telha) e outros.Em 1975, em entrevista à revista Fatos & Fotos, assumiu-se homossexual. Não deu outra: foi perseguido pela ditadura. “Eu fazia um show em 1976 ou 1975, com Carlos Machado (antigo Rei da Noite carioca), ele tinha o Night and Day (casa noturna) e me contratou para fazer um espetáculo. Na porta, tinha uma placa de três metros de altura: ‘Edy Star Especial‘. Ali em frente, tinha um café. Acabou o espetáculo, eu tô lá com o pessoal, tomando café e tal, chega a polícia. ‘Documentos‘. Eu, de botinha caramelo e bolsa Sansonite, digo: ‘Está logo ali, no carro. Ali, bem ali‘. Não quiseram nem saber, me botaram no camburão. Então, eu estava sentado ali, preso, e vendo o cartaz com meu nome bem em frente. Comecei a chorar porque compreendi que eu não era absolutamente nada naquele momento. Nada“, lembrou Edy à revista Muito.Após muitas idas e vindas, Edy foi embora do Brasil em 1992, indo morar na Espanha, aproveitando convite do Festival Teatro en Primavera, de Madri.Apresentou sua montagem de O Belo Indiferente, de Jean Cocteau, e por lá ficou, atuando e trabalhando em casas noturnas como apresentador.O devido reconhecimento

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Voltou em 2010, quando concedeu a já citada entrevista ao jornal A TARDE – possivelmente a primeira à imprensa brasileira após seu retorno. A volta ao Brasil foi aproveitando outro convite – desta vez, de Sylvio Passos, o célebre presidente do maior fã-clube de Raul Seixas, o Raul Rock Club. Curador do Palco Toca Raul na Virada Cultural de São Paulo, Sylvio chamou Edy para cantar o Sessão das Dez na íntegra.Desde então, recebeu homenagens e foi reconhecido. Em 2017, finamente gravou seu segundo álbum solo, 43 anos depois de Sweet Edy: Cabaré Star (Saravá Discos), produzido por Zeca Baleiro e Sergio Fouad, com participações de Caetano Veloso (em duas faixas), Ney Matogrosso, Angela Maria, o próprio Zeca Baleiro e Filipe Catto.Sweet Edy foi relançado em CD e LP de 180 gramas – ambos hoje vendidos por pequenas fortunas por aí.Em 2022, a editora Noir, do jornalista baiano Gonçalo Junior, lançou o livro Diário de um Invertido: Escritos Líricos, Aflitos e Despudorados (Salvador, 1956 –1963), reunindo seus textos.Em 2023, Edy lançou seu último álbum, Meu Amigo Sérgio Sampaio, com releituras do colega de Sessão das Dez e participações de Maria Alcina, Renato Piau e Zeca Baleiro.Em 2024, chegou aos cinemas o documentário Antes que me esqueçam, meu nome é Edy Star, dirigido pelo soteropolitano Fernando Moraes.Em janeiro último, saiu outro livro: Eu só fiz viver: a história oral desavergonhada de Edy Star, escrito por Daniel Lopes Saraiva, Igor Lemos Moreira e Ricardo Santhiago.Há cerca de um mês, Edy esteve em Salvador, para participar do Festival Mínimos Óbvios, evento anual de celebração da presença LGBTQIA+ no teatro. “Eu me sinto agradecido e surpreso. Nunca pretendi fazer nada desse tipo, ter um livro ou documentário. Nada disso. Que é que eu posso fazer? Não estou fazendo nada, eles estão fazendo”, declarou, em nova entrevista à Muito, publicada em 23 de março.“Eles dizem que eu sou maravilhoso. Maravilhoso, porra nenhuma. Consegui chegar a essa idade e acabou”, arrematou o artista.Descanse em paz, Bofélia.

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