Barra respira história e tradição, sem perder de vista a modernidade

Um dos mais antigos e icônicos bairros de Salvador, a Barra é famosa por suas praias de águas gostosas, infraestrutura que mistura inovação e tradição, e inúmeras opções de lazer. Palco do Circuito Dodô no Carnaval de Salvador, a Barra mistura aquilo que, a princípio, não deveria se misturar: casas com arquitetura histórica ao lado de modernos prédios, espaços culturais – de Pierre Verger, de Carybé, da Marinha do Brasil – cortando praias, cemitério bicentenário dividindo muro com clube esportivo, e ruas tão únicas que parecem “outro bairro dentro do bairro”. A Barra possui uma energia única que conquista a todos com uma facilidade sem igual.“O que mais me encanta na Barra é o contato com a natureza. Vivemos cercados por um mar maravilhoso e o bairro tem uma característica muito positiva: é plano, o que facilita a mobilidade a pé. Podemos ir ao mercado, farmácia ou a padaria caminhando com facilidade. Além disso, há uma sensação de bem-estar constante, porque você está o tempo todo olhando para o mar. Sair ou chegar do trabalho e ver esse cenário é algo que realmente faz bem à alma”, conta a fisioterapeuta dermatofuncional proprietária da clínica Barra Natural Spa, Adriana Good Lima Dantas (57), que mora na Barra desde os sete anos.Adriana conta que tem ótimas recordações da infância e adolescência no bairro, e “amava cada momento”. Frequentadora do Porto e do Farol, assim como uma igrejinha no Jardim Brasil “que era ponto de encontro entre os jovens”, afirma. No final da tarde, antes de sentar para assistir o pôr do sol? Uma passada na Sorveteria da Barra era a lei. Havia também discotecas famosas como a Maria Fumaça e pontos de encontro como o Baitacão, onde os jovens se reuniam para comer sanduíche e socializar. “Foi uma adolescência leve e livre: não tínhamos celular, e mesmo assim conseguíamos nos encontrar na praia durante as férias. São tempos inesquecíveis”, explica Adriana saudosa.Quanto aos moradores da região de 50 anos atrás em comparação com os de agora, “houve sim uma mudança”, aponta Adriana. Hoje se vê um número maior de idosos morando no bairro – 32.5% dos moradores da Barra têm 60 anos ou mais, de acordo com o IBGE. “Com a chegada de prédios mais novos e um número maior de imóveis para aluguel de temporada, o perfil também tem migrado para o de turistas. Já os bares e restaurantes possuem certa rotatividade, mas alguns resistem, como o restaurante Veleiro do Yacht Clube e o boteco Bagacinho”, explica. Já os frequentadores soteropolitanos aumentaram bastante de tamanho, mas ainda continuam sendo de idades variadas.“Tenho lembranças na Barra de quando ainda era criança e ela sempre foi movimentada, principalmente a praia. Minha mãe brinca que a única coisa que mudou nas praias da Barra foram os tamanhos dos biquínis, porque sempre foi cheia. Mas acho também que a Barra foi deixando de ser, como muitos falam, da elite, sabe? Acho que o avanço das coisas, principalmente do nosso transporte, ajudou a tornar a Barra uma região acessível para os soteropolitanos, não só durante a nossa vontade de ir para praia aos domingos, mas a semana toda”, reflete a estudante de geografia Carina Guedes (23), moradora de Brotas.Mil e uma opçõesMas não é de hoje que o bairro é visto como um local para curtir o verão e passar as férias. A Barra “teve início” quando o donatário Francisco Pereira Coutinho chegou na Baía de Todos os Santos, em 1536, e construiu uma vila onde hoje está o Porto da Barra. “A Vila do Pereira passou a ser chamada de Vila Velha quando, na região da Rua Chile, Salvador, então chamada de Vila Nova, começou a ser criada. A Vila Nova foi crescendo e no século XIX alcançou a Vila Velha e se tornou um local de veranistas, já que estava distante do centro”, explica o historiador e arquiteto Chico Sena.Com o passar do tempo, mais e mais moradores firmaram residência na Vila Velha e o comércio cresceu logo depois. “E à medida que a Barra avançava dessa forma, principalmente com o aumento de moradias, a região do Rio Vermelho se tornou o local de veraneio da população. Meus bisavós, por exemplo, veraneavam lá. As regiões de Itapagipe, Praia da Boa Viagem e Avenida Beira Mar também se voltaram para o veraneio, ainda que o número de moradias já estivesse crescendo nelas”, aponta o historiador. E essa energia de verão, lazer e claro, festa, nunca deixou a Barra.O próprio Carnaval de trio elétrico nasceu entre a Rua Chile e a Praça Castro Alves e foi crescendo quase organicamente até chegar na Barra, que hoje possui, além de um dos principais circuitos da festa momesca em Salvador, uma infinidade de opções de lazer. É no mar? Stand up, canoagem, jet ski, mergulho no Parque Marinho, faixa de areia para o bronze e diversão na beira. Calçadão? Bike, patinete, corrida ou uma caminhada sem compromisso. Cansou de andar? Tem açaiteria, sorveteria, lanchonetes, lojas diversas, baianas de acarajé e coco verde – além de bancos ao longo da orla e o extenso gramado do Farol para você apenas sentar e apreciar a vista.Quer se aventurar pelas ruas? Tem café, lojas, padarias, academias, bares, restaurantes, hamburguerias, shopping, casa de show e diversos espaços que garantem lazer dia e noite. Opções que vêm e vão, mas que estão sempre presentes no bairro. A terapeuta Ana Ribeiro Barbosa de Oliveira (43), por exemplo, relata que a sua história com a Barra começou na extinta Perini da Barra, delicatessen que ela e sua família visitavam toda tarde de sábado.“Subir aquela escadaria era como caminhar até o paraíso. Tinha uma parte externa com cadeiras e mesas e uma vitrine enorme dentro. Já na adolescência, eu estudava numa escola no Jardim Brasil e amava passar por todos aqueles casarões e árvores. Na hora do recreio podíamos sair e lembro de ficar embaixo de uma árvore com minhas amigas tomando sorvete, cantando e fofocando. É uma lembrança muito querida”, recorda a terapeuta, nostálgica.Outra situação constante nos recreios da Ana era encontrar Bell Marques. “Ele passava correndo de bandana e eu falava com ele. A própria vivência do bairro da Barra”, aponta risonha. Toda a família da terapeuta mora pela Barra e ela, que possui um apartamento no bairro desde 2007, mora em definitivo nele desde 2017. “A gente mora aqui por causa da qualidade de vida, é um bairro que ainda passa a sensação de cidade pequena e é cheio de personalidade. Temos o Pelourinho e o Santo Antônio, por exemplo, que são bairros históricos que foram melhor preservados. Já a Barra é um bairro antigo modernizado”, explica.Muitos dos históricos casarões da Barra deram lugar a enormes prédios. A Perini e sua inesquecível escadaria já se foram há algum tempo. Encontrar Bell Marques de bandana correndo pela Barra? Isso sim ainda é possível. “A verdade é que a Barra mudou muito. Sou da Paraíba, moro em Salvador desde 1964 e frequentei bastante a Barra nesses anos. Então só de observar essas ruas vejo um pouco de seu passado, como a antiga Av. Oceânica com trânsito nas duas direções e as muitas lojas que deram lugar a pousadas. O bairro cresceu e mudou bastante, mas ainda acho maravilhoso, é uma beleza que só tem aqui”, conta o aposentado Severino Lucas da Silva (79), que mora em Brotas.Inovação e tradição“A antiga Barra era muito mais viva e pulsante, com um comércio forte que dava identidade ao bairro. A requalificação feita durante a gestão de ACM Neto trouxe melhorias na pavimentação e organização urbana, mas teve um impacto negativo significativo no comércio”, pondera a fisioterapeuta Adriana Good Lima Dantas. A arquiteta Fátima Oliveira, que mora no bairro desde criança, é enfática ao dizer que sim, “a Barra passou por várias mudanças” e a mais significativa foi, sem dúvida, a sua requalificação. Concluída em 2015 e com um investimento que ultrapassou os R$67 milhões, a requalificação divide opiniões até hoje.Para Fátima, o maior erro da requalificação surgiu logo no início, quando a prefeitura encomendou um projeto sem consultar moradores e comerciantes locais “para saber dos seus anseios e necessidades para o bairro”. Ela explica que as ruas, por exemplo, eram muito mais arborizadas antes e que depois da requalificação, muitas árvores seguem sendo cortadas. “E ao fazer as calçadas, cimentam os troncos das árvores até que elas morram. Também tínhamos um bom comércio de bairro e clínicas diversas, mas desde a requalificação dezenas desses estabelecimentos foram fechados, com o fechamento de ruas e a falta de estacionamentos livres espantando os consumidores”, lista a arquiteta.Diretor de comunicação da Associação de Moradores e Amigos da Barra (Amabarra), Waltson Campos explica que a realidade é que “nós não queremos ser só mais um bairro de concreto, mas sim um bairro com história e magia”. Morador da Barra há cerca de 17 anos, Waltson conta que, naquela época, o bairro estava um pouco largado. “Aquela Barra já passou por muitas mudanças, positivas e negativas, mas é um bairro que sempre teve essa convivência comunitária. Por ser pequeno, você consegue conhecer os moradores e os vendedores ambulantes de rua, sabe o nome deles e todo mundo te conhece.Entre as melhorias que a Barra teve nos últimos anos, Waltson destaca os tombamentos do Marco da Fundação da Cidade e do Morro do Cristo, e a melhora da arborização da Orla da Barra. “São alguns pequenos ganhos que nós vamos tendo, mas continuamos a lutar, pois os problemas vão se avolumando e não há propostas por parte das autoridades. Nós da associação temos conversado sobre aproveitar a vocação turística e náutica do bairro para tornar a Barra um distrito cultural. Assim podemos fortalecer suas características culturais e históricas, e reduzir a percepção de que a Barra é apenas um bairro ligado ao Carnaval”, pondera o diretor da Amabarra.O Forte Santa Maria (que abriga o Espaço Pierre Verger de Fotografia da Bahia), o Forte de São Diogo (que abriga o Espaço Carybé das Artes), o Farol da Barra (que abriga o Museu Náutico da Bahia), o Cemitério Britânico (com seus mais de 600 jazigos e mais de 200 anos de história) e a Mansão Clemente Mariani (e sua imensa área preservada) são apenas algumas das estruturas históricas da Barra com muito a nos contar. “Mesmo passando por muitas mudanças, a Barra continua sendo esse lugar referencial na cidade, marcado pela Baía de Todos os Santos, pelo Atlântico e pelas suas fortificações tão importantes, que mostram, com um exemplo muito claro, a relevância de Salvador no palco do mundo nos anos de 1600 e 1700”, afirma o historiador Rafael Dantas.Em 1536 o donatário da capitania da Baía de Todos os Santos, Francisco Pereira Coutinho, chegou na região e fundou a chamada Vila Pereira onde hoje está o Porto da Barra. O local foi escolhido por ser o único porto natural acessível entre os Fortes de Santa Maria e São Diogo: protegido por areia e afastado das pedras. A Vila Pereira, uma das mais antigas do Brasil, abrigava cerca de 100 portugueses, um pequeno forte, habitações e uma capela. No entanto, conflitos frequentes com os indígenas tupinambás resultaram no saque da vila e na morte da maior parte dos colonos.“Francisco Pereira então fugiu para Porto Seguro e quando tentou retornar, naufragou próximo à praia de Cacha Prego, na Ilha de Itaparica, onde foi capturado e morto por indígenas”, explica o historiador e arquiteto, Chico Sena. Com a decadência da vila, Portugal decidiu transformar a capitania em território sob controle direto da coroa e Tomé de Souza deu início a construção de uma fortaleza. “Mas não no Porto da Barra, que era considerado um lugar bem vulnerável. Ele e seus 800 homens foram atrás de um lugar elevado entre onde estão hoje as Praças Municipal e Castro Alves. Foi assim que a Rua Chile, que conectava as portas norte e sul da fortaleza, se tornou a primeira rua de Salvador”, explica.Inicialmente, Salvador foi erguida como uma vila dentro da fortaleza – chamada de Vila Nova -, mas em 1551, com a criação do bispado pelo Papa Leão III, a povoação foi elevada à dignidade de cidade. Enquanto isso, o Porto da Barra, antiga Vila do Pereira, passou a ser chamado de Vila Velha. “E esse é um ponto muito interessante, pois a Barra como um local de fato, antecede a própria fundação de Salvador. Foi apenas no século XIX que a Barra foi incorporada à cidade como freguesia, um termo equivalente ao conceito de bairro, que recebia muitos veranistas por estar longe do centro”, explica Chico Sena.Com o tempo, a região se tornou cada vez mais residencial, enquanto o comércio também se expandia, mas foi a inauguração da Avenida Sete de Setembro, em 1915, que trouxe uma grande mudança para a Barra. Com 4,5 km de extensão, a nova avenida conectou diretamente o Largo do Farol da Barra à Ladeira de São Bento. Isso fez dela uma das vias mais importantes da cidade e consolidou a Barra como bairro residencial.
Adicionar aos favoritos o Link permanente.