O Rio Grande do Norte, raramente, vira manchete nacional. Quando isso acontece, a primeira reação dos potiguares é de espanto. Foi o que ocorreu na semana passada quando a rotina dos natalenses foi subitamente interrompida por uma notícia inesperada: o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), após passar mal durante uma tour que faria pelo interior do estado, havia sido transferido de helicóptero, às pressas, para um hospital particular em Natal. Depois de dois dias de internação, ele foi levado em uma UTI aérea para Brasília.
O episódio atraiu não apenas os holofotes da imprensa nacional, mas também uma multidão de seguidores devotos. Em vigília constante na porta do hospital, apoiadores do ex-presidente criaram uma cena que beirava o místico. O ápice dessa espécie de culto à imagem de Bolsonaro aconteceu na sua saída do Hospital Rio Grande.

As centenas de pessoas que o aguardavam, interditando o trânsito na Avenida Afonso Pena, no bairro do Tirol, entraram em um transe coletivo quando ele apareceu para saudá-las antes de entrar na UTI Móvel que o levaria até o Aeroporto Internacional de São Gonçalo do Amarante, na Região Metropolitana de Natal.
Bolsonaro, apesar de andar lentamente, ainda usando uma sonda nasogástrica, foi ao encontro das pessoas, chegando inclusive a subir na ambulância para acenar para a multidão. A atmosfera entre seus seguidores era um misto de emoção, fé e idiolatria.
A expectativa
Os momentos que precederam a saída dele do hospital, no final da tarde de sábado (12), foram de muita expectativa, comoção e nervosismo.
Enquanto a imprensa aguardava informações sobre o estado de saúde do ex-presidente para reportar ao país, os seguidores faziam orações, entoavam canções religiosas e gritavam palavras de ordem na esperança de serem ouvidas pelo “mito”, que é como se referem a Bolsonaro.
O número de pessoas à espera de Bolsonaro aumentou depois que o assessor de comunicação do hospital onde ele estava internado desde a sexta-feira (11) informou que o ex-presidente faria uma aparição para agradecer aos seus apoiadores.

“Podem espalhar que ele vai acenar para o público”, anunciou o assessor na recepção do hospital. Os bolsonaristas, imediatamente, obedeceram o comando, transmitiram a informação através das redes sociais e convocaram outros seguidores para demonstrar apoio ao ídolo deles.
Rapidamente, as pouco mais de 30 pessoas que faziam plantão em frente ao Hospital Rio Grande viraram 300. Por volta das 17h30, quando o ex-presidente finalmente apareceu, um tumulto se formou.
A comoção assumiu aspectos de histeria de massa, os gritos de “mito” ficaram mais fortes e, mesmo conscientes da fragilidade da condição de saúde do ex-presidente, as pessoas se empurravam para chegar perto, falar com ele e tocar em Bolsonaro.
Ele fez o prometido: aproximou-se do povo, acenou a todos e demonstrou sua gratidão pelo apoio incondicional recebido daquela parcela apaixonada da população de Natal.
Os médicos que cuidaram dele na capital potiguar também não disfarçavam a emoção. Luiz Roberto Fonseca, diretor do Hospital Rio Grande, era visivelmente um dos mais sensibilizados. Em dado momento, ele juntou as mãos em sinal de oração, como se estivesse agradecendo a Deus.

Depois que a ambulância saiu, os seguidores permaneceram por alguns minutos em frente ao hospital, como se não quisessem que aquele momento de catarse coletiva terminasse. Eles choravam, sorriam e se abraçavam, numa mistura de alegria, euforia e tensão causada pela incerteza sobre a recuperação do ex-presidente.
Antes de se dispersarem, firmaram um pacto de manter a corrente de oração, mesmo que virtualmente, pela restauração da saúde de Bolsonaro, que ao chegar a Brasília, no domingo (13), se submeteria a uma cirurgia de desobstrução intestinal que duraria cerca de 12h.
Movimento religioso
Para quem acompanha de perto a cena brasileira nos últimos anos, há uma percepção compartilhada de que o bolsonarismo, definitivamente, não é somente uma nova corrente política, que ganhou força depois da eleição de Bolsonaro em 2018.
Ele se converteu em um movimento que possui elementos explicitamente religiosos, formado de um público devoto que o segue como se seguisse a um líder messiânico, divinamente incumbido de salvar o país das forças do mal – quiçá o mundo.
Essa capacidade de Bolsonaro de mobilizar emoções, corações e mentes, para usar um jargão popular entre os pensadores de esquerda, não é novidade, mas ficou ainda mais evidente, para não dizer tangível, nessa última passagem dele pelo Rio Grande do Norte.
O fato de convalescer de um problema de saúde, consequência do atentado à faca sofrido em 2018, acrescenta a esse enredo um caráter de sacrifício pessoal que é relatado pelos bolsonaristas como mais uma qualidade do líder da extrema-direita.
O lado mítico do bolsonarismo
De acordo com o sociólogo, teólogo e professor titular de Ciências Sociais na UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte), Orivaldo Pimentel Lopes Júnior, o bolsonarismo não pode ser reduzido a um único fator. Ele considera que “querer reduzir esse movimento a apenas seu aspecto político, racional, não funciona”.
“Nós temos um povo profundamente marcado pela visão mítica das coisas, a visão religiosa. Quando você arranca isso desse povo, fica um buraco. Querer transformar isso apenas em um aspecto, vamos dizer assim, político, racional, não funciona. Fica sempre um buraco lá”, comentou.
Para o professor, Bolsonaro soube como cobrir esse “buraco” com uma “proposta de guerra santa contra o comunismo e a impiedade das pessoas que desobedecem as ordens divinas”.

Dessa forma, na visão do professor, Bolsonaro termina ocupando esse lugar de “emissário de Deus” da Terra. Aos olhos de quem observa à distância, a afirmação talvez pareça exagerada, mas dois dias convivendo de perto com os bolsonaristas confirmaram a dimensão do fanatismo.
Afirmações como “Bolsonaro foi escolhido pelo próprio Deus para a missão de salvar o Brasil” eram repetidamente verbalizadas pelos mais apaixonados. O inimigo imaginário, como disse o professor Orivaldo Pimentel, continua sendo o “comunismo”, que eles acreditam piamente estar em vias de tomar conta do Brasil.
“A questão é a causa em si”, pontuou o professor, explicando que pouco importa para os devotos que o próprio ex-presidente não apresente em sua vida pessoal nenhuma das características que lhes são atribuídas.
A construção da imagem de enviado de Deus
Essa imagem atribuída a Bolsonaro, na visão do professor Orivaldo Pimentel, foi construída ao longo do tempo através da combinação de três elementos: a facada ocorrida em 2018, a apropriação da pauta de costumes e o movimento religioso que desde então lhe dá suporte.
É comum ouvir análises que sustentam que o bolsonarismo “sequestrou” a religião no Brasil, tamanha a avalanche causada por esse movimento entre esse público, especialmente no meio evangélico.
“A gente costuma dizer na teoria da complexidade que existem dois modos inseparáveis de se pensar o mundo, que são o modo mítico e o modo lógico-racional. Então, quando você tenta tapar um, ele reaparece com uma força fora de controle. É isso que eu percebo. Tentamos, como sociedade, ter uma sociedade totalmente movida pelo racional, mas, de repente, essa questão se mostra como negativa”, analisou.
O professor disse acreditar ser “difícil deter esse processo”. Na opinião dele, seria necessário ter um movimento que fosse um contraponto “mítico salutar” ao bolsonarismo, mas ele não vê ninguém com capacidade para ocupar esse espaço.
“Quando aquilo que há como expectativa no coração das pessoas é dito, isso vale a pena. É o que aconteceu com o Bolsonaro no Brasil e com Donald Trump nos Estados Unidos”, concluiu.
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