Em Santa Luzia, ‘vovô das pipas’ presenteia crianças com suas criações

pipas Geraldino Leandro Antunes santa luzia

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Geraldo se dedica, dia após dia, a fazer as pipas que proporcionam uma infância verdadeiramente lúdica às crianças do Santa Luzia (Foto: Leonardo Cosra)

Como já dizia a escritora Roseana Murray, fabricar e soltar pipas são ofícios delicados: “É preciso juntar papéis de seda, linha e cola/ e um agudo desejo de voar”. É o encantamento com esses brinquedos que fez com que Geraldino Leandro Antunes, conhecido pelas crianças como “vovô das pipas”, passasse a se dedicar à atividade. Aos 72 anos e já aposentado, ele queria não só ocupar o tempo, mas também fazer algo que fizesse bem para cabeça e que ajudasse os outros. Começou a recortar papéis, catar bambus, aproveitar materiais que via no lixo e a usar colagens para criar pipas, sempre únicas, que seriam distribuídas para as crianças de seu bairro, o Santa Luzia, na Zona Sul de Juiz de Fora, e de outros projetos sociais. Desde então, já foram centenas de peças feitas — algumas lembram times de futebol, outras carregam o nome de seus donos ou mensagens para estimular as crianças a sonharem. Em um mundo cada vez mais eletrônico, é esse resgate de uma infância mais parecida com a sua própria que ele tenta incentivar.

A brincadeira com as pipas faz parte da história de Geraldino, mas, quando criança, eram poucas as condições financeiras para conseguir as peças. Depois de ter trabalhado durante décadas como porteiro e segurança, ele foi vendo que podia encontrar formas de fazer as pipas ao menos para as crianças do presente, que poderiam brincar com as criações. “Eu fui aprendendo para passar o tempo. O tempo custa a passar, quando a gente não tem o que fazer. E aí a gente vai inventando. As crianças adoram. Faço todo dia, tenho meu próprio escritório só para isso.” O trabalho começa quando monta as estruturas, depois os papéis e vai pensando como vai dar personalidade a cada pipa.

Não é exagero dizer que ele acorda e vai dormir pensando nas pipas e em como fazê-las. Já diz brincando que chega a ser um vício. Mas o cuidado não é para acúmulo das peças, muito pelo contrário: faz questão que todas sejam doadas para quem quiser brincar. E busca fazer essa distribuição levando as peças em sacolas e distribuindo todas em Santa Luzia, e quando vê alguma criança em sua rua, já pergunta se ela também quer e, em seguida, joga uma da janela de casa. E tem aquelas outras crianças que, já conhecendo suas criações, chegam até ele chamando o “vovô das pipas” e pedindo mais uma. “Vejo muita gente com as pipas que dei por aí. Eles vão crescendo, aproveitando. Eu gosto, porque o mundo está complicado. Criança que fica na rua solta é perigoso. Tem gente boa, mas também tem gente má que ensina coisa errada.”

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PretoVivo, neto de Geraldo, acredita que as pipas são uma forma de ‘incentivar as crianças a entenderem que brincar é coisa séria’ (Foto: Leonardo Cosra)

E o trabalho artístico é delicado — quem vê suas pipas, entende que foram pensadas com cuidado e que trazem uma expressão bem própria do artista por trás delas. É o que percebe Yhan, o rapper PretoVivo, seu neto, que reparou bem como a ação do avô fazia diferença para as crianças do bairro. Ele tem o projeto social Alto Falante, com oficinas culturais e aulas, e conecta o avô com mais crianças que querem as pipas. “A gente vive em um mundo com trabalhos de máquina, só réplicas. E ele podia pegar uma seda lisa e fazer a pipa, mas ele quis trazer formas, personagens, palavras. É um cuidado só dele.” A sua preferida, não por acaso, é uma que tinha um recorte com foto de criança, retirada de revista, e os dizeres “sonho escrita”. Juntos, ele também entende que aprende com o avô: a começar pelas ações de doação diárias, pela vontade de ajudar os outros, que só depois se materializam como projeto.

Brincar é assunto sério

A percepção de que as crianças estavam brincando menos na rua que antes, assim como a preocupação com o futuro delas, também são aspectos que preocuparam Geraldino e que fizeram com que quisesse ajudar. PretoVivo confirma, ainda, que o avô sempre reclama sobre como, depois que inventaram o celular, as crianças só ficam com o aparelho na mão. Ele confirma: “É verdade. Se você sentar do lado de uma criança, hoje em dia, ela não vê, porque não para de mexer no celular”. 

A possibilidade de brincar com as pipas, então, foi passando a ter raízes nessa vontade de se conectar a um mundo mais lúdico e da imaginação. “É uma forma de incentivar as crianças a entenderem que brincar é coisa séria. Eu sou nascido aqui, nesta rua, nós tínhamos brincadeiras que usavam a palavra e o corpo só. É um convite pras crianças voltarem a brincar mesmo”, complementa PretoVivo.

Fazer voar

Para o neto ainda, mais que o cuidado estético, as pipas do seu avô “sempre dizem alguma coisa”. Não é só um passatempo, mas algo que dura, que impacta de um jeito diferente quem está no entorno. As mensagens podem ser variadas, de acordo com quem interpreta, e incluem desde a vontade de retorno a essas brincadeiras até a possibilidade de também sonhar, e, por meio das brincadeiras, ir percebendo os caminhos que se podem percorrer por um mundo melhor. O que importa é aprender a voar.

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