As imagens condensam tecidos e texturas do mundo. No epílogo de seu último livro, Diversidade e arte latino-americana (2024) , Andrea Giunta explicita a dupla concepção de imagem na arte que orienta seus ensaios: como crisálida e como cristal. Essas metáforas nos ajudam a entender as formas comuns e singulares com que se apresentam, ao mesmo tempo, as imagens da arte.Como crisálidas, comportam a noção de latência de vida entranhada na imagem, no processo que desagua na materialidade e na visualidade: “É preciso adentrar o tecido da crisálida, empreender uma viagem para seu interior, para o passado, para a sobreposição de imagens que cada uma condensa em si, e para as operações (estéticas) que a imagem, a obra, ativam”.Como cristais, produzem fragmentos e iluminações de um tempo múltiplo. Existem no sentido de permanência, de objeto concreto, mas que a partir do deslocamento no tempo, se modificam. É sua forma de intervir em distintos tempos a partir de sua materialidade. As imagens carregariam, assim, aspectos reconhecíveis que já experimentamos de/em outras formas, e são ao mesmo tempo novas, o que faz com que as estranhemos: “O único não é o inovador que surge do nada impreciso, mas uma combustão diferente da que conhecíamos”.Os trabalhos de Jasi Pereira, movidos profundamente pelo desejo da forma, nos desassossegam, provocando o deslocamento constante entre formas reconhecíveis e surpreendentes.Natural de Salvador, Jasi viveu fora do Brasil por 17 anos, em viagens e estadias longas em países da América Latina, Europa, Ásia e África, participando de vários processos formativos, exposições coletivas e residências artísticas, como a formação em Tecnologias da Cerâmica e Escultura, na Szkoła Ceramiq Warszawa, Polônia (2015-2017); realizando diversos projetos em conjunto com a artista e arquiteta Sara Silvina Iturraspe e com o ceramista Raul Cerda em Santa Fé, Argentina; se aprofundou no estudo da forma e do desenho de observação na Academia de Belas Artes de Lviv, na Ucrânia, lugar onde também se conectou com a cultura bizantina; e a Residência Nzinga/ Galeria MovArt / Angola, 2023, que tem forte presença em seu trabalho atual, que agora, de volta a Salvador, desenvolve em conjunto com sua formação em Artes Plásticas na Escola de Belas Artes da Ufba.Sua primeira obra apresentada em Salvador foi As cores do silêncio (2023) na exposição Um defeito de cor, marcando a reabertura do Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira (Muncab), em 2023. No ano anterior, 2022, Jasi foi uma das artistas selecionada do 8º Prêmio Tomie Ohtake com a série Silêncio. Nas duas séries, temos grupos escultóricos compostos por corpos humanos, que diferem em sua materialidade.Em Silêncio (2022), são usados resina, mármore e sisal, em As cores do silêncio (2023), cimento, pigmentos e sisal. Jasi compõe seus trabalhos a partir do desenho, início de todo seu processo. Quando tornadas esculturas (crisálidas), são tensionadas pelo espaço que ocupam e tensionam as relações entre si e entre quem os observa (cristais).São corpos que habitam um tempo imemorial, mas que nos atingem no presente como caminhos de afecção para a experiência humana como memória da matéria, carne e terra retomados por gestos extensivos. No texto do catálogo da mostra resultante do 8º Prêmio Tomie Ohtake, Aline Albuquerque afirmou: “Jaci conecta-se à ancestralidade pela profundidade de seus gestos, e nos revela expressões de tempos anteriores aos tempos conhecidos, achados arqueológicos contemporâneos construídos com uma combinação de técnicas milenares”.A matéria que permanece nas duas séries é o elemento central da produção de Jasi, o encontramos em todos os seus trabalhos, como um núcleo que concentra e expande o desejo da forma. O sisal, a fibra retirada do agave sisalana, é lugar de dobra do sentido de dentro e fora, pode estar invisível ou visível nas obras. Está deslocado para algo próximo a brotar ou enraizar. Vida em textura, em cor, em rumor, porque o silêncio não é a ausência de som, é antes alguma coisa viva, real, que sentimos com o próprio corpo. O silêncio das figuras de Jaci é o rumorejar da textura do sisal em contato com o mundo.Na performance Assinalando minha existência no espaço (2024), que apresentou na Ocupação Pivô, o sisal/corpo da artista em movimento traça os caminhos da ação e das conexões com outros corpos em que o sisal é entrelaçado, marca um território.Atualmente, a artista se dedica a uma investigação que teve início na Residência Nzinga, em Luanda, momento em que se conectou com elementos chave para Cabeça-cabaça (2024-2025): “Pude me dedicar a observar, a recolher alguns elementos orgânicos – sendo a cabaça um deles – que fazem parte de diferentes formas e momentos da tradição cultural oral do povo de Angola e, igualmente, de nós aqui na Bahia. De retorno ao Brasil, continuei a coletar elementos, objetos e insumos orgânicos e trazê-los para a convivência em ateliê”.As esculturas reunidas nessa série em processo partem da terra como elemento fundamental, sendo divididas pela artista entre terrosos e cerâmicos. Também nessa série Jasi começa pelo desenho das cabaças. Depois, recorta cada um dos desenhos para movê-los e conectá-los até chegar à forma que deseja para uma escultura. A partir daí, seguindo a montagem dos desenhos, cria com as próprias cabaças os protótipos para as formas de gesso dos terrosos, unindo duas ou mais cabaças com plastilina, argila ou gesso.Nesse momento, algumas peças recebem um corpo humano conectado ao corpo das cabaças, formando uma peça única. O engobe traz cores às peças, que são fixadas pelo uso da encáustica. Todo o processo está embasado na arquitetura vernacular, num sistema de construção bastante antigo, o COB, que tem como base argila, areia, sisal, raízes, cera de abelha e pigmentos, criando uma massa modelável com características que remetem à arquitetura, como resistência e durabilidade, já que é uma técnica que garante a solidificação das matérias no tempo, criando monólitos.Da vivência em Angola, Jaci trouxe ainda palavras do kimbundo que marcam os cerâmicos em esgrafitos com frases que o misturam com o português, mais um elemento que aporta para as artes visuais questões como a transmissão de saberes ancestrais atrelada à relação de sustentabilidade com o território, a partir do conceito e da prática de aquilombamento.O Ateliê 231, que Jaci divide com mais dois artistas, Wesley da Silva e Lucas Cardoso, fica no Engenho Velho da Federação, onde foi realizado o projeto Escultura na periferia: É possível?!, voltado para crianças e adolescentes moradores do bairro, incentivando o olhar atento e sensível ao entorno, os instigando a refletir sobre estética urbana na periferia, ampliando o repertório de memórias positivas no bairro a partir de referências locais, valorizando suas histórias como conhecimento para a criação de metodologias para a produção escultórica, uma prática de aquilombamento que está presente em sua própria história.Quando perguntada sobre o que despertou seu interesse pelas artes, Jaci se recorda de seu tio materno, Hélio Pereira de Almeida, artista multidisciplinar e autodidata com quem conviveu até os seis anos. Na conversa com Jaci em seu ateliê, ressoou um verso de Josely Vianna Baptista, do livro Roça barroca: “Nenhum gesto sem passado/ nenhum rosto sem o outro”.O sentido de comunidade como fundamento da existência marca o trabalho Reunião de comunidade (2024), que fará parte da exposição Afro-brasilidade, com curadoria de João Victor Guimarães e Paulo Herkenhoff, inaugurada no dia 10 de abril no Rio de Janeiro.Em Salvador, seu trabalho pode ser visto na exposição Ecos Malês, na Casa das História de Salvador, até maio próximo. A relevância e consistência do trabalho de Jaci e sua participação promissora no circuito artístico nacional repercutiu em sua indicação à décima sexta edição do Prêmio PIPA, divulgada no dia 4 de abril.*O conteúdo assinado e publicado na coluna Olhares não expressa, necessariamente, a opinião de A TARDE
O rumorejar do sisal
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