Chuva

chuva

Quando ela era criança, ficava horas na janela vendo a chuva cair. Os adultos não entendiam sua serenidade. Podiam compreendê-la às voltas com os livros, com os pincéis, os blocos de papel desenhados, fechada no quarto ou à vontade na mesa da sala, enquanto as outras crianças corriam na rua brincando de pique-bandeira ou pique-pega. Só não podiam penetrar aquele fascínio pela água caindo do céu. O que ela via em um fenômeno tão banal? O que podia deixá-la assim, tão tranquila? O que ia em seus pensamentos infantis?

As janelas da fachada da casa em que moravam davam para um pasto e, mais além, para colinas cobertas por uma mata densa, com casas pinceladas aqui e acolá. Ela não era uma reclusa: brincava também com as crianças da vizinhança, garrafão, amarelinha, pique-esconde, queimada. Mas reservava mais horas para os livros e as canetas. Nos dias de sol, ela desenhava as árvores, as vacas, os cachorros, os raros automóveis que passavam pela estradinha de cascalho pra lá da cerca. Nos dias de chuva, porém, deixava de lado lápis e canetinhas para ficar observando os pingos caindo, fazendo poças no quintal.

Quando a chuva vinha acompanhada de vendaval, seus olhos acompanhavam o rodopiar da água no ar e um sorriso discreto e involuntário se formava em seus lábios. Não lhe interessava o fulgor elétrico dos relâmpagos nem tampouco o estrondo dos trovões, que a tantas crianças atiçam a imaginação. “É Papai do Céu ralhando.” “É São Pedro jogando boliche.” Nenhuma dessas bobagens a impressionava. Apenas a chuva, fosse garoa ou tempestade, a atraía para a janela.

Hoje não há mais pasto, estradinha de cascalho, vacas. Seu horizonte foi tomado por prédios, os blocos e pincéis deram lugar a computador e celular. O pique-pega substituído pela correria entre um e outro compromisso profissional. Da janela do apartamento onde mora, o único verde que divisa é a copa das árvores na rua que resfolega e soluça oito andares abaixo. E nos dias de muito cansaço, quando ela chega em casa e serve-se de uma única taça de vinho e acende um único e ritual cigarro, tudo que ela quer é a distraída companhia da chuva que, mais cedo ou mais tarde, virá.

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