Fotógrafas admiráveis

Vasculhando nas prateleiras de uma livraria especializada em arte, em Milão, me deparei com um livro que ainda não conhecia e que caiu como uma luva para o tema desta coluna. Como março é o mês simbolicamente dedicado a celebrar a luta pelos direitos das mulheres, encontrar um exemplar sobre mulheres fotógrafas pioneiras, no período entre 1851 e 1936, foi um chamado que eu não poderia desprezar.O livro, intitulado Women Photographers Pioneers, reimpresso em 2022 pela editora inglesa Thames&Hudson, traz nomes ignorados por muito tempo de fotógrafas independentes que se dedicaram ao exercício da profissão, predominantemente no ocidente. Apesar de algumas se tornaram notáveis no período em que desempenharam atividades importantes na área – em estúdios, com uma clientela diferenciada; no fotojornalismo e na publicidade ou participando de exposições e movimentos artísticos em prol da fotografia – o fato é que a grande maioria destas mulheres foram desprezadas pela história “oficial” da fotografia.A começar por Mary Olive Edis, não encontrei seu nome em nenhum dos meus livros clássicos sobre o tema, entretanto, a diversidade de sua atuação no campo fotográfico é admirável.Juntamente com sua irmã Katherine, na primeira década do século 20, abriu seu primeiro estúdio, numa cidadezinha costeira no distrito de Norfolk, Inglaterra. Sua irmã desistiu da profissão, logo após se casar. Olive Edis persistiu e se tornou uma das fotógrafas mais populares e bem-sucedidas da época.Ao longo de sua carreira teve vários estúdios, inclusive em Londres, fotografou a sociedade britânica desde os simples pescadores de Norfolk até a família real e políticos, como quatro dos primeiros-ministros ingleses.Simpática e ativa no movimento sufragista, retratando influentes personalidades femininas na luta pelo direito das mulheres para o voto, ela foi uma das primeiras mulheres a ser admitida na Royal Photographic Society.Na fotografia colorida exerceu um papel importante, utilizou uma das técnicas iniciais de fotografia colorida, o autocromo. Patenteada pelos irmãos Lumière, este processo era utilizado por poucos profissionais na época, devido às dificuldades de aplicação. Olive Edis, além de dominar o método do autocromo, o aprimorou criando um instrumento especial para visualizar as imagens.No final da Primeira Guerra Mundial foi contratada pelo Comitê de Trabalho Feminino do Museu Imperial da Guerra para fotografar as condições de trabalho de mulheres inglesas que serviram como enfermeiras, telefonistas, motoristas e que desempenharam trabalhos administrativos e manuais, na França e Bélgica. Na ocasião, ela não deixou de fotografar os efeitos devastadores da guerra na paisagem e nas cidades.Este material faz parte hoje da coleção do Museu Imperial Britânico de Guerra, contudo, seu nome voltou a ganhar visibilidade nos últimos anos quando seu acervo foi contemplado por um projeto de digitalização no Cromer Museum, em Norfolk, possibilitando ser visitado online.ProfissãoJá a fotógrafa americana Imogen Cunningham é mencionada em alguns livros da área, mas de maneira superficial, apenas sendo citada no meio de vários outros fotógrafos que fizeram parte do grupo F/64. Criado nos anos de 1930, o nome designa a menor abertura do diafragma nas câmeras de grande formato, número que proporciona foco em todos os planos da imagem.O grupo era também conhecido como Movimento Fotográfico da Costa Oeste e se notabilizou pela nitidez e qualidade estética das composições puristas.Imogen Cunningham foi uma das fundadoras, porém, apenas os nomes de Ansel Adams e Edward Weston figuram como principais expoentes do movimento. Sobre estes dois fotógrafos podemos encontrar páginas inteiras com detalhes de suas trajetórias na fotografia. Sem querer desmerecer seus valores, pois suas obras são surpreendentes, o que me chama atenção é a omissão de importantes contribuições no campo fotográfico feita pela fotógrafa.Como esquecer de suas pesquisas na área, a exemplo da tese intitulada The Scientific Development of Photography, feita na Universidade de Washington, em 1907, a qual teve como tema o método de trabalho do fotógrafo e etnólogo Edward S. Curtis com impressão em platina e retoque de negativos.No período que esteve na universidade, ela atuou como fotógrafa para o Departamento de Botânica, registrando muitas espécies de plantas. Em sequência, ganhou uma bolsa de estudo na Technische Hochshule, em Dresden, Alemanha. Lá, aprofundou seus estudos acerca do processo de platinotipia, método de ampliação de positivos sobre papel que emprega sais de ferro e platina, melhorando os resultados tonais e o tempo na impressão.Outro feito relevante foi a publicação, em 1913, de um artigo de sua autoria intitulado Photography as a Profession for Women, onde defende o direito das mulheres a exercerem a profissão de fotógrafa. Em um trecho do texto, Imogen Cunningham declara: “As mulheres não estão tentando superar os homens ao entrar nas profissões. Elas estão simplesmente tentando fazer algo por si mesmas. Embora possa haver uma grande diferença na interpretação que mulheres e homens dão a qualquer arte, não há, ou não deveria haver, nenhum padrão estabelecido por uma diferença de sexo”.Memória baianaNa Bahia, se formos revisar a memória feminina da fotografia, encontraremos várias fotógrafas merecedoras de referências. Desta forma, trago o nome de Arlete Soares, uma fotógrafa talentosa, que teve uma participação fundamental para as primeiras publicações da obra de Pierre Verger em português.Arlete recebeu sua primeira câmera aos 11 anos, como herança de seu pai, mas só começou a fotografar mais tarde, quando descobriu que poderia conservar as cenas que a fascinavam com a fotografia.Então, começou a levar a câmera para um de seus passatempos prediletos, observar o vai e vem das pessoas nas esquinas, que muitas vezes passavam abraçadas, brigando, carregando algum embrulho ou uma criança.Nos anos de 1960, foi fazer doutorado na França e lá conheceu Sebastião Salgado. Eles foram vizinhos na Casa do Brasil, na cidade universitária de Paris, e entre eles se estabeleceu uma amizade profunda. Naquela ocasião, Salgado estava iniciando sua carreira como fotógrafo e Arlete frequentava seu laboratório improvisado no apartamento, e ficava admirando as imagens surgirem em contato com os químicos na revelação.Ela conta que uma vez Jorge Amado estava na cidade para receber um prêmio na Academia Francesa de Letras e ela acompanhou Salgado no evento. No dia seguinte eles levaram as fotos para o escritor, que se interessou em comprá-las, mas o fotógrafo recusou a oferta, dizendo que era um presente, contudo, Jorge insistiu e disse que todo trabalho deveria ser remunerado.Espirituosa, ela lembra um detalhe interessante do episódio: “Tinha que assinar um recibo, aí falei, Tião não vai dar, porque a gente é bolsista. Então, Tião deu a ideia de colocar o nome Vasco Moscoso de Aragão, um personagem do livro de Jorge, Os Velhos Marinheiros ou o Capitão de Longo Curso”.Arlete conheceu Verger através de Zélia Gattai e Jorge Amado, depois de comentar sobre suas dificuldades em encontrar autores da língua portuguesa para sua tese, em particular um título de Verger, Fluxo e Refluxo. Ela foi apresentada a Verger em Paris. Depois deste primeiro encontro, ele lhe enviou uma cópia do livro acima citado, criando, assim, um laço de amizade entre os dois.Em seguida, sensibilizada pelo valor simbólico do acervo de Verger, largado numa cave, em Paris, ela se empenhou em resgatar todo material, pesando 130 kg, e trouxe para casa do fotógrafo em Salvador.Posteriormente, quando voltou para Salvador no início de 1970, ela fotografou no TCA um encontro inédito na época, um show de Caetano Veloso e Chico Buarque, foi procurada pelo produtor dos cantores, vendeu muitas fotos, e daí em diante não parou.Ela criou, juntamente com Arnaldo Gleber e Enéas Guerra, entre outros amigos, um grupo de fotografia chamado ZAZ, que teve muitas encomendas para o Estado, principalmente no período inicial do Centro Administrativo.O grupo foi desfeito alguns anos depois e ela perseguiu seus sonhos e com sua câmera fez uma grande viagem para a Índia e outros países. Ao retornar à Bahia, atendendo a uma promessa feita a Verger, Arlete criou a editora Corrupio depois de tentar convencer, sem sucesso, alguns editores no Sul do Brasil a publicar as obras do fotógrafo e etnólogo francês.Já o trabalho fotográfico de Arlete, seu acervo, hoje possui cerca de 100 mil fotografias. Me chama atenção sua energia transformadora e a delicadeza do seu olhar, principalmente nos retratos espontâneos de personalidades em várias áreas da cultura.Seguramente, à medida que o passado atuante de muitas fotógrafas se torna público e surgem novas pesquisas sobre a participação feminina em várias áreas do conhecimento, as mulheres vão tomando o seu lugar de direito na história da fotografia e da humanidade.*Doutora em Artes Visuais e professora de Fotografia na Escola de Belas Artes (Ufba) – [email protected]*O conteúdo assinado e publicado na coluna Olhares não expressa, necessariamente, a opinião de A TARDE
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