O que dizem os nossos pertences?

Todo mundo que conheço está assistindo a doramas ou conhece alguém que não perde um desses programas. Com frequência, escuto alguém dizer: “Fulano é dorameiro”. E ao escutar essa expressão, penso na maravilha que é a formação de palavras no português brasileiro. Muito produtivo na língua portuguesa, o sufixo -eiro pode indicar muitas coisas. No caso em questão, forma um substantivo a partir de outro para apontar uma atividade que tem se tornado cada vez mais popular no Brasil: assistir a doramas.Na minha ignorância (e eu não estou sozinho nisso), achava que todas as séries produzidas nos diversos países asiáticos levavam essa denominação. Não é bem assim. É verdade que há uma forte tendência entre os falantes brasileiros para o uso generalista da palavra “dorama”, colocando nesse pacote, por exemplo, produções audiovisuais dos variados países asiáticos. No entanto, buscando informações e pesquisando o assunto, descobri que o uso adequado do termo (de acordo com especialistas) corresponde a um formato de série de televisão japonesa que abarca os mais diversos gêneros (comédia, ação, romance, suspense, fantasia, terror e por aí vai). O termo “dorama” vem justamente da pronúncia da palavra “drama” em japonês. Foi assim que descobri que o episódio de uma série sul-coreana que assisti, e que mexeu muito comigo, era denominado K-drama.Da língua viva e carregada de vícios e virtudes à lexicografia, há muito imbróglio. A Associação Brasileira dos Coreanos, por exemplo, condena a definição da Academia Brasileira de Letras (ABL) para a palavra “dorama”, que se apoia na tendência coloquial dos falantes brasileiros e parece ignorar os preconceitos e as violências possíveis em determinados usos linguísticos. Nos exemplos de uso do termo elencados pela ABL, porém, constam citações de diferentes fontes para esmiuçar o uso genérico, e também o mais adequado. A língua viva é um território de disputas e poder.Eu ia começar essa crônica dizendo que, embora eu não seja todo mundo (como aprendi com mainha), assisti ao episódio do dorama A Caminho do Céu; mas agora posso encaminhar esta crônica para o final dizendo que, embora eu não seja todo mundo, assisti ao episódio do K-drama A Caminho do Céu, que conta a história de uma dupla, cujo trabalho consiste em lidar com os pertences de quem faleceu. Eles trabalham na Move To Heaven como “limpadores de traumas”. Com reverência e delicadeza, eles têm a missão de limpar o antigo ambiente da pessoa falecida e organizar seus pertences. Nesse processo, carregado de emoção e de um toque especial de um dos personagens, eles vão reconstruindo as histórias das pessoas a partir dessa arrumação. Por fim, entregam os achados aos familiares da pessoa falecida. Uma vida inteira cabe em uma caixa?Terminei o primeiro episódio e fiquei muito inquieto. A história me comoveu. Uma dúvida crescia enquanto eu tentava imaginar o que aqueles personagens contariam da minha vida aos meus parentes se fosse eu um dos personagens falecidos da história. O que dizem os nossos pertences? Revelam sonhos para o futuro? Evidenciam o amor pela família e pelos amigos? Guardam segredos inconfessáveis? Expõem paixões avassaladoras? Decodificam os complexos traços de nossas personalidades? Uma coisa é certa, existe muita vida nos pertences de quem já não está mais entre nós.*Evanilton Gonçalves é autor de O coração em outra América (Paralelo13S)
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