Libania, Juliana, Manoel, Coriolano, Josè, Meirelles X A História Invisível

por Marcos Aurélio Felipe

Como instrumento de trabalho, o escravo tem um preço. Como propriedade, tem um valor. Seu trabalho responde a uma necessidade e é utilizado. O escravo, por conseguinte, é mantido vivo, mas em “estado de injúria”, em um mundo espectral de horrores, crueldade e profanidade intensos. […] A vida do escravo, em muitos aspectos, é uma forma de morte-em-vida. Como sugere Susan Buck-Morss, a condição de escravo produz uma contradição entre a liberdade de propriedade e a liberdade da pessoa. Uma relação desigual é estabelecida ao mesmo tempo em que é afirmada a desigualdade do poder sobre a vida. Esse poder sobre a vida do outro assume a forma de comércio: a humanidade de uma pessoa é dissolvida até o ponto em que se torna possível dizer que a vida do escravo é propriedade de seu senhor. | Achille Mbembe

Na sessão extraordinária da Junta da Fazenda da Província do Rio Grande do Norte, no primeiro dia de maio de 1888, saiu o despacho para o pedido do Tenente Felippe Nery de Carvalho e Silva. Publicado cinco dias depois no periódico Gazeta do Natal, na edição de 5 de maio daquele ano, o despacho da Junta da Fazenda se referia à solicitação de cancelamento do imposto provincial sobre a possessão de seis escravos, que, dois meses antes, tinham sido alforriados “de forma gratuita e incondicional”. Principalmente porque inexistindo a mercadoria, que tem preço e valor, inexistia a necessidade do tributo. Em um momento em que não havia diferença entre uma sela, um cavalo, um barril e uma pessoa – africana ou afrodescente – escravizada, o pedido do futuro Barão de Serra Branca, que, em 19 de agosto de 1888, receberia o título nobiliárquico assinado pela Princesa Isabel, precisava ser atendido. Suas terras, localizadas hoje na zona rural do município de São Rafael/RN, pertenciam à época a Santana do Matos/RN, situada na Região Central do estado.

Estavam a treze dias da Abolição da Escravidão no Brasil.

Libania,

Juliana,

Manoel,

Coriolano,

Josè,

Meirelles:

eram os seis homens e mulheres negros/as alforriados/as.

Figura 1: Barão de Serra Branca / Mulher africana escravizada (foto: Alberto Henschel, 1869)

No palco da história, há homens e mulheres que ganham relevo, nome e papel no agenciamento dos acontecimentos e há homens e mulheres invisibilizados, reduzidos à condição de objetos, a espectros coloniais racializados e sem agência, tomados como categorias genéricas sem que se faça referência as suas identidades. A produção local do conhecimento histórico sobre os fatos e agentes que envolvem o Barão de Serra Branca e os fatos da alforria dos seus escravos não aconteceu sem escolhas, com um sistema de verdade sendo desenvolvido, consolidado e propagado pela historiografia, a memorialística, o audiovisual e por canais turísticos do YouTube. Esse ato de concessão da liberdade de Libania, Juliana, Manoel, Coriolano, Josè e Meirelles virou notícia na Gazeta do Natal. Embalado pelo “gesto bondoso” de dona Belisária Lins Wanderley: futura Baronesa de Serra Branca, ganhou lugar na história oficial com seus sistemas naturalizados de silenciamento e celebração.

Na nota do periódico da capital da província, entre o documento primário e o perfil digno dos grandes personagens, despontam o “sentimento de piedade” e a “acção nobilissima” da senhora Belisária, que, em “honra da religião, da liberdade e da humanidade”, alforriou os seis últimos escravos dos seus domínios. Esse ato envolve ainda a decisão generosa do futuro Barão Felippe Nery, que, pouco tempo antes, tendo libertado sete dos treze homens e mulheres sob seu domínio, deixara para a sua esposa a possibilidade de ela mesma poder conceder, quando julgasse “oportuno e conveniente”, o direito de ir e vir àqueles homens e àquelas mulheres submetidos/as por um regime de força. Entrelaçados, eram gestos que se completavam em “prol” do Outro, que, destituído de agência, mais uma vez dependia de terceiros para não morrer em vida.

Painel 1: recortes de jornais e retrato da Baronesa de Serra Branca

***

A história aristocrática não tem limite.

Nunca tinha visto os nomes de Libania, Juliana, Manoel, Meirelles, Coriolano e Josè na crônica e na historiografia local, cujas identidades esquecidas numa nota de jornal sempre lhes foram negadas. Que mundo tiveram que destruir e reconstruir para continuarem sobrevivendo? Quais foram os seus primeiros sentimentos, desafios, sonhos e desejos? Por onde andaram? Em que corpos permanecem no tempo presente: quais memórias, gestos, movimentos e forças de resistências sobreviveram de suas vidas. Sem nomes, figuraram por anos apenas como ilustrações da memorabilia do Brasil excludente e como exemplares culturais, corpos dançantes e em movimento, comprobatórios de certa herança africana. Da historiografia ao audiovisual, não passaram de abstrações genéricas nas narrativas da História Invisível. Já o “abolicionismo precoce” do Barão e da Baronesa de Serra Branca sempre foi exaltado, cantado em verso, prosa e em imagens, pela historiografia e, depois, pelas narrativas digitais, que mais parecem produtos publicitários do Brasil imperial.

Sem agência, Libania, Juliana, Manoel, Meirelles, Coriolano e Josè só podiam figurar como entidades à espera da liberdade que, devido à ação dos seus senhores, tiveram a graça alcançada. No Rio Grande do Norte, a crônica histórica cascudiana é um bom exemplo de como se erguem personagens e invisibilizam outros. Ao fazer o perfil biográfico da senhora Belisária Wanderley, o eminente folclorista situou as pessoas africanas e afrodescendentes como peças do espólio mais amplo do Barão de Serra Branca, sem qualquer diferença entre um pedaço de terra, uma carroça de boi e um corpo em suas afecções, desejos e sonhos. Se aquele período ecoa nos cômodos, portas, tijolos, janelas, telhas e ripas dos escombros do casario da antiga Fazenda Serra Branca, os domínios da escravidão, há bem pouco tempo, podiam ser identificados no que sobrou da liteira da Baronesa e nas ruínas da senzala – curiosamente, o único espaço de todo o complexo arquitetônico que não sobreviveu “ao tempo”.

Painel 2 – Escombro do complexo arquitetônico da Fazenda Serra Branca – Fotos: © Marcos Aurélio Felipe

A ideia do senhor de escravos tocando rabeca no propalado Banquete da Liberdade, organizado pela piedosa futura Baronesa, que resolveu servir digno jantar ao seus ex-escravos pelos serviços prestados, não pode encerrar a memória de um regime fundado naquilo que Mbembe identificou, na condição de um escravo, como uma tripla perda: “perda do ‘lar’, perda de direitos sobre seu corpo e perda do estatuto político […] [que] equivale a uma dominação absoluta, uma alienação de nascença e uma morte social […]”. As situações sob as quais viveram e morreram Libania, Juliana, Manoel, Meirelles, Coriolano e Josè são traços inextirpáveis de um regime marcado pelo descarte de pessoas. O combate ao racismo no Brasil passa também pela interposição de contramemórias, de maneira que aqueles homens e mulheres não continuem sendo reduzidos a um algarismo que, na antevéspera do 13 de maio de 1888, servia para indicar a quantidade de alforriados nas tabelas do Boletim da Sociedade Libertadora Norte-rio-grandense. Não tinham rostos, sonhos, desejos – eram apenas um número abstrato, sem nome e sem corpo.

Pela data da alforria de Libania, Juliana, Manoel, Meirelles, Coriolano e Josè, em 25 de março de 1888, não se sustenta a imagem do Barão de Serra Branca como abolicionista precoce, que, muito antes do 13 de maio, supostamente antecipara o fim da escravidão na Província do Rio Grande do Norte. A libertação de homens e mulheres negros/as, sob seus domínios, deu-se a apenas quarenta e nove dias da promulgação da Lei Áurea. O historiador Muirakytan Macêdo, em seu livro Rústicos Cabedais (Ed. Sol Negro, 2021), já havia lembrado que era ínfimo o número de escravos por fazendeiro nas ribeiras dos sertões, além da inexistência de senzalas, como tradicionalmente conhecemos nos grandes centros coloniais. Nos inventários e testamentos pesquisados, não passava de cinco o número de escravos que os senhores com mais posses detinham em suas fazendas.

Mas, da imprensa provinciana, passando pela crônica histórica, ao audiovisual e canais turísticos do YouTUBE, a memória do Barão e da Baronesa de Serra Branca tem sido desenhada de forma redentora. Por isso, não surpreende que a alforria de Libania, Juliana, Manoel, Meirelles, Josè e Coriolano seja propagada como uma “linda história” a ser valorada pela posteridade. Não surpreende, igualmente, que domine a versão aristocrática da história, constitutiva de mais um capítulo sobre a Abolição, invariavelmente, narrda como obra filantrópica e humanitária da sociedade branca em favor do povo negro escravizado, como já observou o historiador Laurentino Gomes. Atualmente, a partir de uma ação comunitária da Associação dos Cidadãos Rafaelenses, há um movimento de agentes locais para reconstituir e preservar o espaço e o complexo arquitetônico do casario da antiga Fazenda Serra Branca, o que demanda, necessariamente, uma nova leitura do passado sem adornos postiços ou idealizados, com o compromisso de recolocar no palco da história os que sempre foram/são marginalizados, excluídos e perderam nos jogos e disputas da memória, e, principalmente, qual o lugar da escravidão no Brasil contemporâneo.

Quanto desse país perdura e é reproduzido ainda hoje?

________

Marcos Aurélio Felipe  é professor associado do Departamento de Práticas Educacionais e Currículo (DPEC/CE/UFRN) e autor dos livros ‘Ensaios sobre cinema indígena no Brasil & outros espelhos pós-coloniais” (Sulina, 2020) e “Outras fronteiras do cinema: colonialidade, contracolonização e cosmofilmias históricas nas cinematografias indígenas” (Sulina, 2024). 

The post Libania, Juliana, Manoel, Coriolano, Josè, Meirelles X A História Invisível appeared first on Saiba Mais.

Adicionar aos favoritos o Link permanente.