Crise climática avança sobre a Baía de Todos-os-Santos

Quando se fala em aquecimento global, é fácil imaginá-lo como um problema distante, algo que só afetará futuras gerações ou lugares remotos. Mas a realidade é bem diferente. O aumento das temperaturas já deixa marcas visíveis em um dos cenários mais icônicos de Salvador: a Baía de Todos-os-Santos. Suas águas calmas e mornas enfrentam os impactos diretos da crise climática, e a maior ameaça paira sobre a sua riqueza mais valiosa — a biodiversidade.Ao contrário do que se imagina, os impactos do aumento das temperaturas na Baía de Todos-os-Santos não são recentes. O professor Guilherme Lessa, do Departamento de Oceanografia do Instituto de Geociências da UFBA, coordena há anos projetos de monitoramento das águas da baía. Séries históricas de dados meteorológicos e oceanográficos, iniciadas na década de 1960, revelam uma tendência inequívoca de aquecimento. Diante dos números, Lessa não esconde o pessimismo sobre o futuro desse patrimônio natural tão emblemático.A análise dos dados revela uma série de problemas, mas poucos são tão preocupantes quanto a redução da vazão dos rios que deságuam na Baía de Todos-os-Santos. Segundo a pesquisa, os três principais afluentes — Paraguaçu, Jaguaripe e Subaé — vêm perdendo volume de água ao longo das últimas décadas. “Identificamos uma queda constante na pluviosidade regional, o que reduz tanto a entrada de água doce dos rios quanto a precipitação direta sobre a baía”, explica o professor Guilherme Lessa, em entrevista ao A TARDE.Menos chuva significa mais insolação, e isso se traduz em águas ainda mais quentes na Baía de Todos-os-Santos. “Esse aumento da radiação solar contribui diretamente para a elevação da temperatura da água”, explica Lessa. Mas o problema não para por aí. A redução do fluxo dos rios também significa menor aporte de nutrientes, essenciais para a cadeia alimentar marinha — um impacto que se espalha por todo o ecossistema.A escassez de água doce impacta os menores organismos da baía, desencadeando um efeito em cascata. “Tudo começa com o fitoplâncton”, explica Lessa. Essas microalgas são a base da cadeia alimentar, servindo de sustento para o zooplâncton e o ictioplâncton, essenciais para a sobrevivência dos peixes em seus estágios iniciais de vida. Com menos nutrientes disponíveis, todo o ecossistema marinho entra em desequilíbrio. “Menos nutriente, menos produtividade primária; menos produtividade primária, menos peixe”, resume o pesquisador.

Renovação das águasA redução da água doce na Baía de Todos-os-Santos afeta não apenas a vida marinha, mas também sua capacidade de renovar as águas e manter o equilíbrio com o oceano. “Os rios que deságuam na baía desempenham um papel fundamental nesse processo, pois reduzem a salinidade interna, criando duas massas d’água com densidades distintas”, explica Lessa.Ele detalha: “A gravidade empurra a água mais densa do oceano para dentro da baía pelo fundo, enquanto a água da baía escoa para o oceano pela superfície.” Esse mecanismo de renovação, embora lento, é constante e mais eficiente do que as correntes de maré. Quando essa troca é comprometida, alerta Lessa, os nutrientes deixam de circular, criando um cenário de estagnação. “Sem renovação, a baía se torna o ambiente ideal para a proliferação excessiva de certas algas na superfície, o que pode levar até a episódios de anoxia, ou seja, a falta de oxigênio na água”, explica.Entre 2020 e 2023, a Baía de Todos-os-Santos teve um alívio temporário devido ao fenômeno La Niña, que causou verões menos quentes e mais úmidos, resfriando as águas costeiras. “A tendência observada ao longo de seis décadas foi momentaneamente revertida nesses anos, pois a La Niña intensificou as trocas de água com o oceano”, explica Lessa. No entanto, em 2024, o calor voltou com força total. “Tivemos um aquecimento excepcional das águas, sem precedentes na série histórica”, destaca o pesquisador.Branqueamentos dos corais

A elevação da temperatura das águas tem provocado outro fenômeno preocupante na Baía de Todos-os-Santos: o branqueamento dos corais. Segundo o CEO da Carbono 14, José Roberto Caldas Pinto, conhecido como Zé Pescador, esse processo não afeta apenas os recifes, mas desencadeia um desequilíbrio em toda a biodiversidade marinha. “Quando os corais adoecem e morrem, a gente perde um ambiente rico, que atrai peixes, crustáceos e moluscos. O ecossistema fica empobrecido”, explica.No último ano, a Baía de Todos-os-Santos enfrentou um branqueamento significativo dos corais, embora menos severo que em estados vizinhos como Pernambuco e Alagoas. Ainda assim, o impacto foi expressivo, evidenciando a urgência de ações para a recuperação do ecossistema. Diante desse cenário, a Carbono 14 desenvolveu uma metodologia inovadora para restaurar os corais e fortalecer a biodiversidade marinha.A Carbono 14, como explicou Zé Pescador, é uma startup dedicada a soluções socioambientais inovadoras, integrando ciência e conhecimento tradicional. Seu projeto de recuperação dos corais envolve a coleta de fragmentos de organismos danificados e sua fixação em estruturas feitas a partir do esqueleto do Coral Sol, uma espécie invasora. “Trituramos esse material e o transformamos em bloquinhos, que servem como base para o crescimento dos corais nativos”, detalha.O método, único no mundo, já foi reconhecido internacionalmente e tem garantido a recuperação de colônias que, de outra forma, não sobreviveriam. Atualmente, a startup mantém berçários subaquáticos na Ilha de Maré e em Itaparica, onde milhares de corais são cultivados antes de serem reintegrados aos recifes naturais.No entanto, a restauração dos corais é apenas uma peça no complexo quebra-cabeça da preservação marinha. Para Zé Pescador, o sucesso dessas ações depende de um esforço conjunto entre ciência, comunidades tradicionais e políticas públicas. “Não adianta só recuperar coral. A gente precisa conscientizar as pessoas, envolver pescadores, quilombolas e jovens dessas regiões na proteção do meio ambiente”, ressalta. Além disso, Zé Pescador destaca a importância da reciclagem e do descarte correto de resíduos, já que a poluição agrava a degradação dos recifes.Combate a poluição

Iniciativas de preservação do meio ambiente podem ajudar a combater os efeitos da crise climática na BTS, como também observou José Rodrigues, doutor em Geologia Marinha e professor do Instituto Federal Baiano (Ifba). Além dos projetos de recuperação de recifes de coral, o especialista destacou que investimentos em saneamento básico são fundamentais, pois ecossistemas saudáveis têm maior capacidade de recuperação diante das mudanças climáticas e do aumento da temperatura da água.Outro ponto crucial é o combate à pesca predatória e à introdução de espécies invasoras, que agravam o processo de degradação dos recifes. Rodrigues alertou que práticas como o uso de explosivos na pesca, ainda registradas em algumas áreas da Bahia, causam danos irreversíveis ao meio ambiente marinho. Além disso, a chegada de organismos exóticos tem ameaçado as espécies nativas, comprometendo a biodiversidade e afetando diretamente atividades econômicas como a pesca e o turismo subaquático.“A longo prazo, a combinação de fatores como aquecimento global, poluição e práticas insustentáveis pode comprometer a resiliência dos ecossistemas da Baía de Todos-os-Santos”, afirmou ele. O professor ressaltou que, sem ações concretas de mitigação e conservação, a tendência é o empobrecimento da vida marinha e a perda de serviços ecossistêmicos fundamentais para a economia e o bem-estar das populações costeiras.

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