Quipu: a megaestrutura cósmica que desafia nossa compreensão


Como estrutura gigantesca com aglomerados de galáxias desafia o que sabemos do Universo. Representação artística da teia cósmica, uma vasta estrutura que conecta galáxias e aglomerados ao longo de pontes invisíveis moldadas pela gravidade, com centenas de milhões de anos-luz de extensão.
Volker Springel (Max Planck Institute for Astrophysics) et al.
Cientistas anunciaram em fevereiro a descoberta de uma das maiores estruturas já observadas no nosso Universo conhecido.
Batizada de Quipu, em referência a um antigo sistema de contagem do Império Inca, caracterizado por sua estrutura ramificada, esta superestrutura cósmica se estende por aproximadamente 1,3 bilhão de anos-luz.
Três curiosidades sobre o Quipu
Tamanho: é mais de 13 mil vezes o comprimento da Via Láctea.
Matéria: tem aproximadamente 200 quatrilhões de massas solares
Abrangência: juntamente com outras quatro superestruturas similares identificadas pelo mesmo estudo, abrange cerca de 30% das galáxias, 45% dos aglomerados galácticos, 25% da matéria total e ocupa 13% do volume de TODO o chamado Universo conhecido.
A caça a gigantes cósmicos
A descoberta, liderada pelo astrofísico Hans Böhringer e sua equipe, foi publicada recentemente na revista científica “Astronomy and Astrophysics”. Böhringer conta ao g1 que, junto com seus colegas, conseguiu identificar essa superestrutura ao examinar uma região pouco estudada do cosmos, situada entre os redshifts 0,03 e 0,06 – o que significa uma faixa de distância de aproximadamente 424 a 815 milhões de anos-luz da Terra.
O método empregado pelos cientistas envolveu o uso de emissões de raios-X para mapear aglomerados de galáxias que contêm milhares de estrelas e enormes quantidades de gás extremamente quente.
Na prática, estas emissões funcionam como sinalizadores que indicam as regiões mais densas de concentração de matéria, permitindo aos pesquisadores traçar uma espécie teia cósmica.
“Identificamos esses aglomerados de galáxias no Universo próximo por meio de suas emissões de raios-X em um mapa do céu produzido pelo ROSAT [um observatório espacial de raios-X lançado em 1990 pela Agência Espacial Alemã]”, explica Böhringer.
Mas para confirmar que estas manchas de raios-X eram, de fato, aglomerados de galáxias, os cientistas usaram também telescópios ópticos e mediram suas distâncias.
“Dessa forma, conseguimos mapear em 3D a distribuição dos aglomerados, que seguem a matéria escura em grande escala, ou seja, se alinham às suas estruturas invisíveis. E ao identificar essas regiões mais densas, encontramos essas superestruturas”, detalha o cientista.
LEIA TAMBÉM:
O que há em um buraco negro? Dá para ‘viajar no tempo’? Especialista explica
Foto borrada? Entenda como foi feita a imagem do buraco negro e por que a cor laranja não existe
Histórica 1ª imagem de buraco negro ganha cara mais nítida após pesquisa chefiada por brasileira
O superaglomerado Shapley, antes considerado a maior estrutura do Universo, foi superado por pelo menos quatro outras gigantes recém-identificadas, incluindo Quipu.
ESA & Planck Collaboration/Rosat/Digitised Sky Survey
Do Bing Bang à constante de Hubble
Mas toda essa magnitude tem uma consequência. Isso porque a massa destas superestruturas exerce uma enorme influência em nossas tentativas de observar, medir e compreender o cosmos.
Um efeito significativo disso acontece sobre a radiação cósmica de fundo, uma luz muito antiga que viaja pelo Universo desde seus primórdios e que, quando passa perto de estruturas gigantescas como Quipu, sofre alterações sutis.
E isso faz com que a massa dessas estruturas colossais funcione como uma lente gravitacional, distorcendo levemente a radiação que passa por elas, algo semelhante a como um vidro curvo altera a aparência do que vemos através dele.
Com isso, essas pequenas distorções funcionam ruídos que se misturam ao sinal original da radiação cósmica. E o desafio para os astrônomos é conseguir justamente filtrar esses “ruídos” para estudar a radiação pura.
O que é um buraco negro?
Sem esse filtro adequado, por exemplo, nossa compreensão do Big Bang e dos primeiros momentos do Universo fica comprometida, pois não conseguimos separar perfeitamente o que são características originais da radiação e o que são alterações causadas por essas gigantescas estruturas espaciais.
Além disso, essas superestruturas podem ainda impactar as medições da constante de Hubble, um valor fundamental na cosmologia que descreve a velocidade de expansão do universo.
Enquanto as galáxias se afastam umas das outras devido à sua expansão, elas também possuem velocidades locais, chamadas de velocidades peculiares ou movimentos de fluxo.
E quando observamos galáxias distantes, precisamos distinguir entre esses dois movimentos. Mas o problema é que as gigantescas massas de estruturas como o Quipu puxam as galáxias ao seu redor, criando “correntes locais” que se misturam ao movimento geral de expansão, dificultando a capacidade de cientistas de medir com precisão a verdadeira taxa de expansão do universo e, consequentemente, ornando o trabalho dos cosmólogos muito mais desafiador.
Cordas cósmicas
Mas apesar do seu tamanho imponente, Quipu apresenta uma característica fascinante: sua estrutura filamentar distinta, semelhante a cordas entrelaçadas – o que inspirou justamente sua comparação com o sistema de contagem inca.
Böhringer diz que essa formação é um resultado natural da evolução cósmica. Ou seja, como o Universo começou com regiões que tinham um pouco mais de matéria que outras, essas áreas mais densas começaram a atrair mais matéria para si devido à gravidade, como um imã cósmico.
Assim, quando essas regiões começaram a se contrair pela gravidade, elas não encolheram igualmente em todas as direções. Em vez disso, primeiro se achataram como uma panqueca. Isso acontece porque, naturalmente, a região se contrai primeiro na direção onde ela é mais fina.
Um quipu inca.
Wikimedia/Domínio Público
Contudo, após formar essa estrutura achatada, o processo continua. A “panqueca” de matéria segue se contraindo, mas na sua segunda dimensão mais estreita. Isso transforma a matéria em um longo filamento – como um cordão cósmico esticado pelo espaço. E é por isso que vemos essas estruturas alongadas que lembram cordas no Universo.
E enquanto as regiões densas formam filamentos, ocorre o oposto nas áreas com pouca matéria. Essas regiões menos densas não sofrem contração – pelo contrário, elas se expandem mais rápido que o resto do universo e formam enormes bolhas praticamente vazias. São os chamados “vazios cósmicos”, enormes regiões do espaço com quase nenhuma galáxia.
O resultado final é uma estrutura que lembra uma espuma ou uma teia gigantesca: bolhas vazias cercadas por paredes e filamentos de galáxias. E nas interseções desses filamentos – onde vários “cordões” cósmicos se encontram – formam-se justamente os grandes aglomerados de galáxias, como os nós de uma rede.
“Quipu é, portanto, uma estrutura muito típica em sua forma, mas extraordinariamente grande”, diz o cientista.
O destino de Quipu
Apesar do seu tamanho imponente, Quipu pode, porém, não ser por muito tempo o primeiro colocado na lista das maiores estruturas do universo.
Outras superestruturas cósmicas impressionantes competem pelo título, como o Superaglomerado Laniakea com seus 520 milhões de anos-luz de diâmetro e a Grande Muralha de Sloan, que se estende por mais de um bilhão de anos-luz.
Nessa lista, a concorrente mais séria atualmente é a Grande Muralha de Hércules Corona-Borealis, uma misteriosa concentração de matéria que supostamente mede mais de 10 bilhões de anos-luz, ocupando cerca de 11% do universo observável.
No entanto, ela ainda não foi confirmada como uma estrutura única e interconectada, o que deixa seu status oficial em dúvida.
As cinco gigantes recém-identificadas: Quipu, em vermelho; Shapley, em azul; Serpens-Corona Borealis, em verde; Hércules, em roxo; e Sculptor-Pegasus, em amarelo.
Hans Böhringer et al
E os cientistas acreditam que estruturas ainda maiores podem existir em regiões inexploradas do cosmos. Como explica Böhringer, encontrá-las exigiria telescópios muito mais potentes e capacidade para analisar volumes enormes de dados astronômicos.
E o próprio Quipu não permanecerá como uma entidade única eternamente. Por causa da energia escura, uma força misteriosa e repulsiva que atua no Universo, a atração gravitacional não conseguirá manter toda a estrutura unida.
Com o tempo, diferentes partes de Quipu se contrairão separadamente, formando diversos aglomerados de galáxias. Este processo, porém, levará vários “tempos de Hubble” – ou seja, várias vezes a idade atual do Universo.
Para avançar nossa compreensão dessas superestruturas, Böhringer diz que planeja estudar como as galáxias evoluem dentro e fora desses ambientes, investigar o efeito de lente gravitacional que essas massas enormes podem produzir, e analisar como elas interagem com a radiação cósmica de fundo.
“Estamos avaliando formas de aprimorar este estudo”, completa.
Simulação da Nasa mostra como é cair num buraco negro
Adicionar aos favoritos o Link permanente.