Memória literária

Minha vida de professora me reserva episódios lindos. Durante uma atividade de escrita coletiva para a produção de “memórias literárias”, recebi uma pérola feita por três garotas incríveis que cursam o Ensino Médio Técnico Integrado de Vestuário do IFRN – Campus Caicó. Uma “retextualização” construída de forma coletiva a partir de uma entrevista. Eu me emocionei tanto ao ler, pois ele revela a forma como minhas alunas, sobretudo, me enxergam. E por isso pedi as meninas a autorização para publicá-lo depois dos devidos ajustes. Deixo aqui meu agradecimento às alunas Emilly Marjhory, Lyégia Mayara, Mirella Fernandes (alunas do 2º ano do curso técnico integrado de Vestuário – Campus Caicó). Essa história pode até ser minha, mas o texto é de vocês, meninas. Obrigada! Vamos lê-lo!?

SE JOGA, GATA!

O dia 3 de março de 2005 estava quente. Um calor abafado que fazia suar até os pensamentos. Naquela manhã, eu ainda era professora do Colégio X. Naquela tarde, já não era mais.

Fui expulsa. Assim, sem mais nem menos. Ou melhor, com muitos “poréns” e entraves. A sala da direção era um espaço onde o poder se impunha e, naquela reunião que mais parecia um tribunal sem defesa, o veredito veio seco: “Bia, você não pode mais dar aula aqui”.

Saí pela porta da frente, de cabeça erguida, mas carregando no peito um turbilhão de sentimentos. Medo, raiva, alívio? Talvez um pouco de cada. O que seria de mim? O que seria do meu sonho de ser professora? O que seriam dos meus gatos?

Cheguei em casa exausta. Sentei-me no sofá da sala e abri um dos meus vinhos favoritos. Momentos assim pedem uma boa taça de vinho; é como um abraço quente para a alma, capaz de afogar até as mais profundas mágoas.

Em vez de uma taça para relaxar os nervos, bebi uma garrafa inteira. Eu merecia depois do ocorrido de hoje. Joguei-me na cama e fechei os olhos, tentando silenciar os pensamentos que gritavam dentro da minha cabeça. Quando os reabri, o impossível aconteceu.

Eu estava ali. Ou melhor, ela estava ali: a minha versão de 2025. E, por algum motivo inexplicável, ela sorria.

— Oi, gata — disse ela, sentando-se na beira da cama, cruzando as pernas com uma naturalidade que me assustou. — Você tem um café aí? Temos muito para conversar.

Sentei-me devagar, ainda tentando entender se era um sonho ou se eu finalmente tinha enlouquecido.

— Você… sou eu? — minha voz saiu trêmula.

— Sim. E não. Eu sou você daqui a vinte anos. Só que mais vivida, mais fodona e, principalmente, mais realizada.

Eu ri, meio sem graça.

— Realizada? Acabei de ser expulsa de uma escola. Meu sonho morreu.

Ela balançou a cabeça, desaprovando.

— Seu sonho nem começou, Bia. Você vai dar aula, sim. E não só isso. Você vai ser reconhecida e aclamada em todos os lugares que for, principalmente em suas salas de aula. Gata, VOCÊ SERÁ UMA DOUTORA! Além de escrever textos incríveis em uma coluna do Saiba Mais. Você será um verdadeiro sucesso.

Fiquei em silêncio. Era difícil acreditar.

— Como isso aconteceu? — perguntei, encarando-a como se esperasse que, de repente, ela puxasse uma lista com todas as respostas.

— Porque você não desistiu. Porque você pegou cada porta fechada e construiu um palco. Porque você entendeu que ser professora e ser travesti não são coisas opostas. São sua força.

— Mas eu tenho medo — confessei.

Ela segurou minha mão e apertou firme.

— Eu sei. Mas se joga, gata. Você ainda vai viver muita coisa massa.

Eu sorri. Pela primeira vez naquele dia, eu realmente acreditei que a minha história estava só começando.

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