Conheça a história de Joana da Paz, a alagoana que denunciou o tráfico no Rio de Janeiro e inspirou filme com Fernanda Montenegro

De Quebrangulo, no Agreste alagoano, para a Zona Sul do Rio de Janeiro, a história de Joana Zeferino da Paz chegou aos cinemas esta semana no filme Vitória, estrelado por Fernanda Montenegro. Mas, em duas horas, o filme de Andrucha Waddington se torna pequeno para condensar toda a saga dessa alagoana que registrou, em uma série de filmagens feitas da janela de sua casa, o cotidiano do tráfico de drogas, do comércio de entorpecentes ao uso de armas, em uma favela de Copacabana, Zona Sul do Rio de Janeiro. Com as provas que levaram à prisão de mais de 30 pessoas – entre traficantes e policiais –, ela precisou ingressar no programa de proteção à testemunha. 

Mas, antes do ato arriscado de filmar vários crimes sendo cometidos à luz do dia — material que confiou ao jornalista Fábio Gusmão em 2004 —, Dona Joana protagonizou seus próprios dramas. Quem nos conta é o próprio Gusmão, autor do livro que inspirou o filme, que conversou com o TNH1 nesta quinta-feira, quando a história dessa conterrânea de Graciliano Ramos chegou aos cinemas de todo o país. O depoimento na íntegra você confere no vídeo abaixo.

 

A coragem de filmar e entregar todo o material à polícia ela puxou da própria mãe, que denunciou às autoridades alagoanas o coronel que estuprou Joana, ainda uma adolescente, que acabou engravidando.

“É importante lembrar que Dona Joana teve uma vida muito marcada pela violência. Ela, nascida em Alagoas, na cidade de Quebrangulo, relatou o caminho ali de sofrimento que ela viveu, a violência sexual que sofreu de um coronel da região. A gravidez que veio por conta desse abuso, a retirada dela do lar, para que as pessoas não soubessem o que ele tinha feito, e ela começou a peregrinar, ainda muito menina, por cidades não só de Alagoas, como também de Pernambuco. Então, isso forjou essa mulher guerreira, lutadora”, conta Gusmão.

“Ao retornar para casa, ainda grávida, perto de ter o seu filho, depois de ter passado por todas as dificuldades e adversidades, ela relata para a mãe o que aconteceu com ela, conta toda a verdade, e a mãe, Dona Rosa, decide denunciar isso às autoridades locais, independente de quem era a figura [um coronel]. Ou seja, ela ali já tinha um grande referencial de força, de coragem”, diz. 

Dona Joana e a mãe, Dona Rosa (Imagem: Extra)

 

O encontro entre Gusmão e Dona Joana

Antes de chegar às salas de cinema na última quinta-feira, 13, a saga retratada nas telonas começa em 2004, quando Gusmão, cumprindo mais um dia de pautas policiais em uma delegacia, tem o primeiro contato com as imagens registradas por Dona Joana. Somente dias depois, ao assistir às fitas em casa, ele compreende o tamanho e a importância da história que tinha em mãos.

 

“Eu tinha acabado de passar pela coordenadoria de inteligência, ela [Dona Joana] tinha deixado as fitas ali na coordenadoria. Eu pedi para ver, assisti, mas o volume estava baixo e, duas semanas depois, eu pedi para o chefe do setor me deixar assistir completamente. Eu levei para casa e aí me deparei com a história da vida real. Era um documentário com relatos muito profundos, dramáticos, viscerais mesmo de Dona Joana, falando sobre o que ela estava vivendo nos últimos anos e o que ela tinha passado a fazer. O que a motivou, que era provar para as autoridades que ela não estava mentindo e o que funcionava ali.”

As imagens registradas por Dona Joana (veja algumas delas no quadro abaixo) mostravam flagrantes da movimentação do tráfico de drogas na comunidade. Incomodada com a violência, ela resolveu filmar tudo de sua janela e, em seguida, entregar tudo para a polícia.

Mas somente cinco meses depois, o jornalista conhece pessoalmente Dona Joana. “Desse momento até eu conhecê-la, foram mais cinco meses. Mas, depois que me apresentaram, em agosto de 2004, a gente começou ali a ter uma relação. Fiquei muito curioso sobre sua história e passei a frequentar o seu apartamento. A primeira vez que entrei, tomei um susto e isso a gente vê no filme de uma forma muito sensível, do Alan Rocha, que captou essa emoção que eu senti. E eu percebi que seria muito difícil publicar com ela ali”, conta.

A história de Dona Joana só veio a público em agosto do ano seguinte, em uma série de reportagens assinadas por Gusmão, quando ela já estava incluída no programa de proteção à testemunha.

“A história ganhou o país, ganhou o mundo, vários países repercutiram a história e eu respondia tantas perguntas, curiosidade sobre a vida dela, sobre a minha relação com ela, que eu decidi escrever um livro, que se chamava na época Dona Vitória da Paz e hoje se chama Dona Vitória Joana da Paz”, explica.

Por que ela resolveu registrar os criminosos? 

Em reportagem publicada no Extra,  Fábio Gusmão explica por que Dona Joana resolveu denunciar os criminosos. 

“Segundo relatou na 12ª DP (Copacabana), bandidos a ameaçaram diversas vezes, mandando que saísse da janela. No dia 20 de março de 1999, de acordo com ela, eles dispararam contra sua janela. No dia 20 de novembro, um policial escreveu um relatório dizendo que fora diversas vezes no apartamento de dona Joana, mas nunca a encontrou em casa. Ela havia permitido que a polícia usasse o imóvel para fazer a investigação”. 

Chamada de mentirosa, Dona Joana resolveu provar –  “Dona Joana entrou com um processo na Justiça contra o Estado em 2003 pedindo indenização por danos morais e materiais. Ela se revoltou quando o então comandante do 19º BPM (Copacabana) disse que ela estava mentindo, que a PM combatia o crime na Ladeira dos Tabajaras. Ele falou que ela precisaria provar as acusações que fazia contra a polícia”, conta o jornalista. 

“Após voltar da Defensoria Pública, ela decidiu provar a verdade e foi comprar uma câmera de filmagens. A nota fiscal original da máquina revela o valor: R$ 2.116, pagos com uma entrada de R$ 800 e o restante, R$1.316, divididos em 12 vezes”.

“Quem sou eu para que ela representasse?”

Dona Vitória sonhava ser interpretada nos cinemas por Fernanda Montenegro

Após sair das páginas dos jornais para o livro do mesmo autor, a saga de Dona Joana atraiu também o interesse do cineasta Breno Silveira, diretor de filmes como 2 Filhos de Francisco e Gonzaga – De Pai para Filho. Mas Silveira morreu em 2022, no começo das filmagens. Com isso, a direção do longa passou para as mãos de Andrucha.

A escolha de Fernanda Montenegro para dar vida à “Dona Vitória” realiza um sonho da própria Dona Joana. Fábio Gusmão conta que ela sempre citava a atriz, mas tinha dúvidas se a veterana aceitaria o convite.

“Ela ficava feliz em saber que a sua história no cinema ganharia uma outra projeção, uma outra repercussão. E desde o primeiro momento ela quis e sonhou que fosse interpretada pela Dona Fernanda Montenegro. Isso sempre foi um sonho dela. Eu lembro muito que ela repetia bastante, dizendo que Dona Fernanda era uma atriz extraordinária, ela merecia ter ganhado o Oscar com Central do Brasil. E ela depois sempre falava assim… mas será que ela vai aceitar? Será que ela vai fazer mesmo? Quem sou eu para que ela representasse? E eu falava: ‘A senhora é uma grande mulher com uma grande história, uma história de vida muito profunda, né?’”.

Vitória: Filme está em cartaz em todos os cinemas de Alagoas

O longa Vitória estreou em todo o país e, em Alagoas, pode ser conferido nas salas da capital e do interior. O filme está em cartaz no Arapiraca Partage Shopping, Centerplex (Shopping Pátio Maceió), Cinesystem (Parque Shopping), Grupo Cine (Shopping da Vila – Delmiro Gouveia), Kinoplex (Maceió Shopping) e Arte Pajuçara.

Para o autor do livro adaptado para o filme, Vitória consegue transpor para as telas a essência da história de Dona Joana.

Assista ao trailer do filme: 

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