Freud o apito e o VAR

Imagem: Freud o apito e o VAR - arquivo Portal Fio do Tempo
Imagem: Freud no apito e no VAR – arquivo Portal Fio do Tempo

Lucio Massafferri Salles*, Pragmatismo Político

O futebol não é apenas um esporte, dizia Nelson Rodrigues. É um drama, uma tragédia, uma comédia, um conjunto de atos e paixões que transcende o simples jogo de vinte duas pessoas correndo atrás de uma bola. E, como em qualquer drama que se preze, há personagens principais, coadjuvantes e, é claro, o árbitro.
O árbitro é essa figura solitária, vestida de preto, amarelo, vermelho ou azul, que carrega consigo a espada e a balança de Themis (Minerva), a deusa da justiça.
E, aqui que se encontra a questão: será que essa espada pende mais para um lado do que para o outro? Será que a balança, em algum momento, perde o desejado equilíbrio?

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Eu diria que é um tema que praticamente nasce com o futebol. É comum ouvirmos acusações de que um juiz agiu com má fé, favorecendo este ou aquele time. E, mesmo que muitos erros possam ser atribuídos à falha humana, à pressão da ocasião ou à simples incompetência, existe sempre aquela pulga atrás da orelha: será que o inconsciente do árbitro não falou mais alto?
Será que, em algum momento, ele não se deixou levar por uma inclinação, por um impulso que nem ele mesmo se deu conta?
Em sua crônica “Freud no Futebol”, Nelson Rodrigues nos alertava para o delicado equilíbrio emocional dos jogadores.
Mas e os árbitros? Quem cuida da saúde mental desses que, muitas vezes, precisam tomar decisões em frações de segundo, sob o olhar atento de milhares de torcedores e câmeras?
Quem garante que, na pressão e calor do momento, o inconsciente não toma as rédeas e conduz o apito para um lado mais… conveniente?
Desejo, medo?

Freud no Futebol

Por si só, isso não é nenhuma falta ou delito. Afinal, o futebol também é paixão e paixão não se escolhe.
Mas, quando essa paixão se mistura com a função de julgar, decidir, ser o guardião das regras, a coisa complica.
Imagine você um árbitro que, desde criança, torce pelo Flamengo, por exemplo. Ele cresceu ouvindo os gritos da torcida, vibrando com gols de Zico, Romário, e sofrendo com as derrotas. E hoje ele está lá, no centro do gramado, com o apito na mão, diante de um jogo crucial para o seu time do coração. Será que, em algum momento, ele não sente um frio na espinha? Será que, em algum lance dúbio, ele não pende a balança, mesmo que inconscientemente, para o lado que lhe é mais caro?
E não é só isso. Há também a força da pressão externa.
Pense no sistema, na silenciosa tensão de apitar uma partida na qual está um time que representa o próprio sistema.
O sistema é capaz de coagir, intimidar.
Um atleta pode ser punido de modo muito mais severo do que seria, em certas condições, se afrontar minimamente que seja, em campo, um time que seja a representação do sistema.
Do poder, do dinheiro. O time, ou times, do sistema, são os que vendem mais e tem o mais cobiçado público consumidor.
Pense num árbitro entrando em um estádio com 60 ou 70 mil vozes apaixonadas, gritando, torcendo, xingando.
As câmeras de TV e celulares estão lá, captando cada movimento, cada expressão, podendo mesmo produzir, em fotos sequenciais, as impressões com as quais o filósofo Walter Benjamim dizia ser possível o olho da câmera captar o “inconsciente óptico” – o instante, em milésimos de segundo, em que a imagem registra aquilo que os olhos normalmente não captam devido ao movimento.
Os analistas estão ali, prontinhos para dissecar e escrutinar cada decisão.

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Não deixa de ser um ambiente hostil, intimidatório, que pode facilmente desestabilizar até mesmo juízes experientes. Nesse turbilhão de emoções, quem garante que o inconsciente não vai falar, ou melhor, que não vai agir mostrando quase que imperceptivelmente as suas asinhas?
Em um lance crucial, quem garante que o juiz não vai “esquecer” de marcar um pênalti claro contra o time que ele torce? Uma, digamos, passada de pano, de leve, como se diz na grande rede.
Evidentemente não estamos afirmando que todos os árbitros são parciais, ou que todos agem de má fé. Longe disso. Certamente, a maioria faz todo o possível para ser justo, para manter a tal da balança equilibrada. Entretanto, como bem sabia Freud, o inconsciente trai o que se imagina ser absolutamente senhor de si (algo como: “o eu não é senhor em sua própria casa”).

Ele age sem que a gente perceba, sem que a gente queira. Eu diria até que ele sonha, tropeça na fala ou no ato. Não é difícil que ele tome as rédeas, em alguns momentos, em situações onde as emoções estão constantemente à flor da pela. Aliás, perdão. É fácil que ele tome as rédeas, em condições assim.
Ora bolas, o que fazer?
Como garantir a imparcialidade dos árbitros?
Contratando árbitros para os árbitros? Ou quem sabe psicanalistas, para atuarem como VAR psíquico, com uma lupa nos frames à caça do instante em que o danado do impulso emotivo motivou a marcação do pênalti absurdo, que não existiu?

Nelson Rodrigues e o VAR

Talvez a resposta não seja tão animadora e esteja na própria imagem de Themis. A deusa da justiça não só segura a balança e a espada.
Ela está vendada. Sim, pelo menos nessa representação ela não vê os lados, não se deixa influenciar pelas aparências e estímulos comuns.
Talvez seja isso que os árbitros precisem e esteja mais a mão: uma venda simbólica, que os proteja das paixões, das pressões, dos impulsos inconscientes!
Uma venda que os impeça de esquecer que eles não são torcedores, não são fãs e não são apaixonados; pelo menos no gramado, trabalhando.
Eles são, antes de tudo, guardiões das regras. É simples, mesmo sendo extremamente complicado.
Pois, como bem sabemos, até mesmo a deusa Themis pode errar.
E o erro é humano, seja no futebol ou na vida. O erro é humano. Sendo assim, por ora, talvez nos reste torcer para que a balança penda o menos possível…e que a espada corte com justiça.
No fim das contas, o futebol é isso: um jogo de paixões, onde até os deuses podem tropeçar.

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*Lucio Massafferri Salles é jornalista, cronista esportivo, psicólogo e professor da rede pública de ensino/RJ. Doutor e mestre em filosofia pela UFRJ, especialista em psicanálise pela USU, realizou o seu estágio de Pós-Doutorado em Filosofia Contemporânea na UERJ. É criador do canal FluPress (YouTube).

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