Crise de saúde mental: Brasil tem maior número de afastamentos por ansiedade e depressão em 10 anos


Dados de 2024 mostram que o país registrou mais de 470 mil afastamentos do trabalho por transtornos mentais. Trata-se do maior número desde 2014. Capa – Afastamentos por saúde mental
O país vive uma crise de saúde mental, com o pior cenário em pelo menos uma década. É o que revelam dados do Ministério da Previdência Social sobre afastamentos do trabalho, obtidos com exclusividade pelo g1.
O Brasil vive uma crise de saúde mental com impacto direto na vida de trabalhadores e de empresas. É o que revelam dados exclusivos do Ministério da Previdência Social sobre afastamentos do trabalho. Em 2024, foram quase meio milhão de afastamentos, o maior número em pelo menos dez anos.
Os dados, obtidos com exclusividade pelo g1, mostram que, no último ano, os transtornos mentais chegaram a uma situação incapacitante como nunca visto. Se comparado apenas com o ano anterior, as 472.328 licenças médicas concedidas representam um aumento de 68%. (Veja o gráfico abaixo)
Série histórica de afastamentos por saúde mental
➡️ E o que explica o recorde de afastamentos em 2024? De acordo com psiquiatras e psicólogos, é reflexo da situação do mercado de trabalho e das cicatrizes da pandemia, entre outros pontos.
🔴 A crise fez que o governo federal buscasse medidas mais duras. O Ministério do Trabalho anunciou a atualização da NR-1, que é a norma com as diretrizes sobre saúde no ambiente do trabalho. Agora, o tema passa a ser fiscalizado nas empresas e pode, inclusive, render multa. (Leia mais abaixo)
Abaixo, nesta reportagem, você vai ler:
Raio-x dos afastamentos em 2024
Perfil das pessoas afetadas por doenças de saúde mental
O que causa o número recorde?
Os rostos por trás dos números, com relatos de quem vive com a doença
E o impacto no mercado de trabalho
Raio-x dos afastamentos
Os dados solicitados pelo g1 ao Ministério da Previdência Social permitem traçar um raio-x da situação, com a lista de doenças que motivaram os benefícios por incapacidade temporária (antigo auxílio-doença).
➡️ O benefício é concedido pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) quando o trabalhador precisa se afastar por mais de 15 dias. Para isso, é preciso passar por uma perícia médica, na qual é declarada qual doença justifica a licença.
Em 2024, foram 3,5 milhões pedidos de licença no INSS motivados por várias doenças. Desse total, 472 mil solicitações foram atendidas por questões de saúde mental. No ano anterior, foram 283 mil benefícios concedidos por esse motivo. Ou seja, um aumento de 68% e um marco na série histórica dos últimos 10 anos. (Veja a evolução no gráfico abaixo)
Afastamentos por saúde mental – por transtorno
➡️ O número acima traz a lista de doenças de saúde mental que mais geraram concessão de benefícios por incapacidade temporária. O burnout, por exemplo, não está nessa lista. No ano passado, foram 4 mil afastamentos por esse motivo. Os especialistas explicam que o número tem relação com a dificuldade do diagnóstico.
➡️ Além disso, os dados representam afastamentos e não trabalhadores. Isso porque uma pessoa pode tirar mais de uma licença médica no mesmo ano e esse número é contabilizado mais de uma vez.
Procurado pelo g1, o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) não informou quanto de sua verba foi revertida em assistência à saúde mental. Apesar disso, esclareceu que as pessoas passaram, em média, três meses afastadas, recebendo cerca de R$ 1,9 mil por mês. Considerando esses valores, o impacto pode ter chegado a até quase R$ 3 bilhões em 2024.
O cenário por estado
O maior número de licenças está nos estados mais populosos como São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. No entanto, proporcionalmente, quando consideramos o número de afastamentos em relação à população, os maiores índices foram registrados no Distrito Federal, em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul.
➡️ Não há uma explicação para o índice de cada estado, mas especialistas lembram que no caso do Rio Grande do Sul, por exemplo, houve uma tragédia: a enchente que matou centenas de pessoas e deixou milhares sem casa, afetando diversas esferas da vida dos trabalhadores.
Mapa – A
Intertitulo Perfil das pessoas afetadas
Os dados do INSS permitem traçar um perfil dos trabalhadores atendidos: a maioria é mulher (64%), com idade média de 41 anos, e com quadros de ansiedade e de depressão. Elas passam até três meses afastadas do trabalho.
🔴Por outro lado, não foi possível fazer recortes por raça, faixa salarial ou escolaridade, pois os dados não foram informados pelo INSS.
Perfil das pessoas afastadas
🔴 Os especialistas explicam que mulheres são a maioria por fatores sociais: a sobrecarga de trabalho, a menor remuneração, a responsabilidade do cuidado familiar e a violência:
mulheres ganham menos que homens em 82% das áreas, segundo levantamento do IBGE. (Leia mais aqui)
Total de casos de feminicídio cresceu 10% nos últimos cinco anos. (Leia mais aqui)
mulheres foram as mais afetadas pela crise, com maior índice de desemprego e trabalho não remunerado, segundo pesquisa publicada pela revista científica “Lancet”. (Leia mais aqui)
“Esse padrão social sobre as mulheres gera sobrecarga. Ao mesmo tempo, elas têm salários menores e são, muitas vezes, as responsáveis financeiras pela casa. Ou seja, ainda tem toda essa pressão, que foi ampliada com toda a crise na pandemia”, disse o psiquiatra Arthur Danila, pesquisador sobre ansiedade na Universidade de São Paulo (USP).
Segundo o último Censo, as mulheres mantêm financeiramente 49,1% dos lares brasileiros. Isso significa 35 milhões de famílias pelo país. E a maioria está na faixa etária a partir de 40 anos, a mesma idade média dos afastamentos.
“Isso é uma tragédia social anunciada. É a mulher que hoje provém boa parte das casas no país, e essas mulheres estarem neste nível de estafa é um risco econômico. As famílias podem ficar desabastecidas e o consumo diminuir”, diz Thatiana Cappellano, mestre em ciências sociais e consultora sobre trabalho.
Por outro lado, a mulher também pede mais ajuda, e é mais aberta a procurar soluções nos consultórios médicos. Esse é um fator que facilita o diagnóstico desses tipos de transtornos, explica o psiquiatra Wagner Gattaz, especialista em saúde mental no ambiente de trabalho.
“Desde a pandemia, fala-se mais de saúde mental. Então, médicos que antes não tinham o olhar para esse diagnóstico, agora tem”, afirma.
Cresce o número de mulheres à frente dos lares, diz Censo
Intertítulo – O que causa o número recorde
🔴 Os transtornos mentais são multifatoriais e não há uma explicação única para o que está acontecendo. Especialistas ouvidos pelo g1 destacam algumas questões, entre elas as cicatrizes da pandemia. Algumas delas são:
➡️ O luto pós pandemia, que causou mais de 700 mil mortes.
➡️ Estresse emocional após a crise, com anos de isolamento.
➡️ Insegurança financeira com o aumento do custo de vida. De 2020 até 2024, o preço dos alimentos subiu 55%. (Leia mais aqui)
➡️ Aumento da informalidade;
➡️ E o fim de ciclos. Na pandemia, por exemplo, houve um aumento de 16% nas separações.
“A vida voltou ao ‘normal’, mas de uma forma diferente. Foram mudanças abruptas, em meio a um cenário de estresse em que as pessoas não sabiam nem se iam sobreviver. Foi preciso sair do modo ‘emergência’ para perceber a repercussão disso”, explica o psiquiatra Arthur Danila.
Ao longo da crise, pesquisas mostravam já em 2020 que ela poderia deixar sequelas emocionais, aumentando os quadros de transtornos: é o que os especialistas chamavam de “quarta onda da Covid-19”. Com isso, o tema passou a ser mais debatido.
“As sequelas emocionais são o principal motivo, mas há também a percepção e diagnóstico dessas doenças. As pessoas sabem mais e, na linha de frente, os médicos conseguem entender melhor o que é uma crise de ansiedade, ou um desânimo fora do comum que pode ser uma depressão”, pontua Wagner Gattaz, da USP.
Os rostos por trás dos números
Amanda Abdias, de 28 anos, se afastou do trabalho no ano passado depois de anos trabalhando em três empregos para conseguir pagar as contas pós pandemia. O marido dela havia sido demitido e não conseguiu se recolocar e ela acabou absorvendo a demanda financeira.
Ela se manteve em tripla jornada até 2024, quando chegou a um ponto em que não conseguia mais gerenciar as demandas, se percebeu com crises de ansiedade e precisou parar.
Frase Amanda – Ansiedade
No caso de Marcela Carolina, de 44 anos, ela convive com a depressão há mais de 20 anos. Ela explica que isso a afetou em várias áreas, inclusive no trabalho, porque em muitos momentos se tornou incapacitante.
Frase Marcela Carolina
🔴 Marcela ainda tem um agravante: ela é uma mulher negra. Segundo especialistas, o racismo é um complicador para os transtornos mentais na população negra. Dados do Ministério da Saúde, o número de suicídios é 45% maior entre pessoas pretas e pardas, em comparação às brancas.
Beatriz de Oliveira convive com a ansiedade há mais de dez anos, mas a doença chegou a um ponto que a impediu de trabalhar depois da pressão financeira. Ela saiu da casa dos pais na Bahia para viver em São Paulo. Morando em uma quitinete, com medo de perder o emprego e não ter como pagar as contas básicas, ela conta que presenciou o próprio colapso.
Aspas Beatr
Intertítulo – Impacto no mercado de trabalho
As histórias mostram os rostos por trás da estatística e confirmam o impacto dos transtornos mentais no mercado de trabalho: a Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que 12 bilhões de dias úteis sejam perdidos globalmente, todos os anos, devido à depressão e ansiedade. Isso representa uma perda de US$ 1 trilhão por ano.
Segundo Thatiana Cappellano, pesquisadora sobre os transtornos mentais no contexto do trabalho, a pandemia expôs ambientes tóxicos, que se tornaram ainda mais estressantes, e sobrecarregou trabalhadores, culminando nos dados que vemos hoje.
“Muitas pessoas foram demitidas, e as que ficaram aumentaram terrivelmente a intensidade do trabalho. Quando a pandemia acabou, isso não regrediu. Todo mundo continua trabalhando no mesmo ritmo acelerado, só que talvez a gente não tenha estrutura psíquica e física para suportar esse ritmo por tanto tempo”, avalia Thatiana.
Repensar cenários, ouvir os colaboradores e criar estratégias para lidar com o cenário foi uma necessidade na Coris Seguro Viagem. Representantes da empresa contaram ao g1 que precisaram demitir trabalhadores durante a pandemia por causa da crise no setor de turismo.
Com isso, as demandas se acumularam e foi notado um aumento nos atestados entregues por questões relacionadas à saúde mental já em 2022.
“Apesar de não termos afastamentos longos, por mais de 15 dias pelo INSS, tivemos um grande número de atestados com CID de motivos psicológicos. Isso acendeu um alerta”, explica Bruno Venâncio, diretor jurídico e de recursos humanos da Coris.
Nas pesquisas internas, eles identificaram que as licenças tinham como motivos: luto por perda de familiares, pânico pelo medo de pegar o vírus, impactos por problemas financeiros e jurídicos, além das mudanças na rotina familiar com o isolamento social.
A empresa decidiu repensar a estratégia, passou a oferecer apoio psicológico, benefício de academia e orientação financeira e jurídica para funcionários. O resultado foi a melhora no ambiente de trabalho e, consequentemente, queda no número de afastamentos.
Para não depender apenas de iniciativas e também cobrar mais responsabilidade dos gestores, o governo anunciou a atualização da Norma Regulamentadora nº 1 (NR-1), que apresenta as diretrizes de saúde no ambiente do trabalho.
Com as atualizações, o Ministério do Trabalho passa a fiscalizar os riscos psicossociais no processo de gestão de Segurança e Saúde no Trabalho (SST), o que pode, inclusive, acarretar em multa para as empresas caso sejam identificadas questões como:
metas excessivas
jornadas extensas
ausência de suporte
assédio moral
conflitos interpessoais
falta de autonomia no trabalho
condições precárias de trabalho
Segundo Viviane Forte, coordenadora geral de fiscalização em segurança e saúde no trabalho do MTE, a ideia da atualização é trazer mais clareza sobre o tema saúde mental dos empregados e os critérios vão ser exigidos independentemente do tamanho da empresa.
“Caso os riscos sejam identificados, será necessário elaborar e implementar planos de ação, incluindo medidas preventivas e corretivas, como reorganização do trabalho ou melhorias nos relacionamentos interpessoais”, explica a coordenadora.
A fiscalização será realizada de forma planejada, através de denúncias que são encaminhadas ao Ministério. Empresas de teleatendimento, bancos e estabelecimentos de saúde são prioridades por conta do alto índice de adoecimento mental.
As inspeções, que são feitas por auditores-fiscais, verificam o local de trabalho e dados de afastamentos por conta doenças ou acidentes, rotatividade de funcionários, conversam com trabalhadores e analisam documentos para identificar possíveis situações de risco.
Caso sejam encontrados episódios que justifiquem o adoecimento mental dos trabalhadores, pode ser aplicada uma multa que varia entre R$ 500 a R$ 6 mil por cada situação. Além disso, o empregador vai ter um prazo para ajustar o formato de trabalho e evitar mais afastamentos.
As ações adotadas pelas empresas vão ser monitoradas pelo Ministério do Trabalho. Para dar conta de tamanha demanda, o órgão vai contratar 900 novos auditores fiscais do trabalho por meio do Concurso Público Nacional Unificado (CPNU).
No entanto, o ministério não informou como vai estabelecer uma rotina de fiscalização que possa incluir essa demanda, o que faz com que especialistas questionem se a medida pode mesmo ser uma iniciativa para endurecer a cobrança.
“Isso não garantirá um quadro melhor na saúde dos trabalhadores. Existe uma série de normas técnicas reguladoras sobre a saúde ocupacional, mas continua tendo altos índices de afastamento por acidente de trabalho ou doença ocupacional”, explica Thatiana.
Segundo a especialista, a atualização feita pelo Ministério do Trabalho é uma forma de colocar o assunto em alta. Porém, como todas as outras normas técnicas e regulamentares, isto não altera efetivamente o quadro caso não haja uma mudança por parte das empresas.
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