“Ainda Estou Aqui”: Eunice Paiva e sua luta pelos direitos indígenas

O filme ‘Ainda Estou Aqui’ realizou um feito histórico e levou o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro pela primeira vez para o Brasil na noite deste domingo (2). O filme dirigido por Walter Salles foca na busca de Eunice Paiva, interpretada pela atriz Fernanda Torres e indicada ao prêmio de Melhor Atriz, por respostas depois do desaparecimento do seu marido Rubens Paiva, ex-deputado federal levado pelas forças policiais da ditadura militar.Mas além de ter lutado por justiça durante o regime autoritário, Eunice Paiva também se destacou por sua atuação pelos direitos de povos indígenas do Brasil. Depois do desaparecimento de Rubens, Eunice se tornou advogada e se sobressaiu como uma das poucas especialistas em direito originário no país.

Atriz Fernanda Torres como Eunice Paiva em ‘Ainda Estou Aqui’

|  Foto: Foto: Reprodução / Globoplay

Em 1998, ela fez parte da Assembleia Nacional Constituinte, que promulgou a Constituição Federal Brasileira com contribuições da advogada em pontos importantes, especialmente na defesa de terras indígenas contra a ação de grileiros.Ainda durante a ditadura, a Eunice começou a atuar na Comissão Pró-Índio de São Paulo, fundada em 1978 por antropólogos interessados em barrar tentativas de “emancipar” os povos indígenas pelos militares no poder, que à época substituíram o Serviço de Proteção ao Índio (SPI) pela Fundação Nacional do Índio (Funai) em 1967.

Eunice Paiva na saída da aldeia São José, na Terra Indígena Krikati, no Maranhão (1985)

|  Foto: Reprodução/Twitter @marcelorubens

Como assessora jurídica da ONG, Eunice também contribuiu com outras organizações indigenistas no Brasil. Foi o caso da Associação Nacional de Ação Indigenista (Anaí), formada no ano seguinte na Bahia com o intuito de defender e promover o direito a autodeterminação cultural e territorial de populações indígenas do estado.Eunice, Anaí e o indigenismo de denúnciaA título de exemplo, a Anaí começou os trabalhos na causa indígena participando do processo de reconhecimento dos Pankararé, povo do norte do estado, que teve seu cacique, Ângelo Pankararé, assassinado 10 dias depois da fundação da ONG.”[Nessa época] a gente fez uma grande mobilização. A fase inicial de existência da Anaí, nesse finalzinho de 1970 e início de 1980, era de indigenismo de denúncia, do próprio indigenismo estatal oficial. Depois nos especializamos no indigenismo mais técnico, mais profissional”, conta ao MASSA! José Augusto Sampaio, atual diretor da instituição e um de seus fundadores.

José Augusto Sampaio, diretor da Associação Nacional dos Povos Indígenas (Anaí)

|  Foto: Arquivo Pessoal

A Anaí também colaborou com as reivindicações dos povos Tuxá, que lutavam pelo reassentamento digno depois da inundação de suas terras em Rodelas, às margens do Rio São Francisco, para a construção das usinas hidrelétricas de Paulo Afonso e de Itaparica.Mas foi com os Pataxó Hã-Hã-Hãe que a organização teve um auxílio mais efetivo dos conhecimentos legais de Eunice Paiva. “No caso do Hã-Hã-Hãe, Eunice era uma espécie de conselheira jurídica do que a gente das organizações indigenistas, deveríamos fazer para tocar esse caso do melhor modo possível”, explica Sampaio.Além disso, em 1983, em parceria com Manuela com a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, presidente da Comissão Pró-Índio na época, Eunice publicou um artigo no jornal Folha de S. Paulo com o título “Defendam os pataxós”. O texto ajudou a jogar luz sobre as ameaças aos indígenas da etnia e a repercussão colaborou para uma maior pressão da sociedade civil contra o governo.

|  Foto: Foto: Reprodução/Acervo ISA

 Os Pataxó Hã-Hã-Hãe e a luta pela demarcação de suas terrasA reserva Caramuru-Paraguaçu dos Pataxó Hã-Hã-Hãe, ao sul da Bahia, que tinha por volta de 56 mil hectares, foi demarcada em 1927 pelo SPI e pelo próprio governo da Bahia e enfrentou invasões contínuas a partir da chegada do regime autoritário do Estado Novo, comandado por Getúlio Vargas a partir de 1937.De acordo com o Boletim Jurídico da Comissão Pró-Índio de 1983, ao fim da década de 1930, as invasões de fazendeiros auxiliados por forças policiais geraram chacinas, obrigaram os sobreviventes a fugir para as reservas dos Maxacalí e dos Krenak em Minas Gerais, e resultaram no arrendamento de grande parte de suas terras. Segundo o documento, naquele período, o território reservado a esse povo foi reduzido para 36 mil hectares.

Pataxó Hãhãhãe na antiga Fazenda São Lucas

|  Foto: Franz Fluch/Reprodução/Acervo ISA

O agravamento veio com a ditadura militar iniciada em 1964, como explica Sampaio. “Nesse período, o processo de invasão da reserva dos Pataxó Hã-Hã-Hãe se aguçou a um ponto que a partir de 1976, ainda na ditadura, o governo do Estado da Bahia passou a emitir títulos de terra para os invasores, baseando-se na suposição de que não havia ali mais indígenas”Isso só começou a ser revertido a partir dos anos 80, com o processo de redemocratização, com a formação incipiente de um movimento indígena e com a criação das organizações indigenistas, como a Anaí e a Comissão Pró-Índio de São Paulo.Em 1982, os Hã-Hã-Hãe remanescentes conseguiram retomar, por conta própria, parte de seu território. A parte recuperada compreendia a Fazenda São Lucas com um tamanho bastante reduzido em relação ao demarcado inicialmente nos anos 30. Esse espaço não atendia a demanda dos indígenas que estavam retornando de suas terras depois da expulsão.

Pataxós hã hã hães em Brasília durante julgamento pelo Supremo Tribunal Federal

|  Foto: Wilson Dias / Agência Brasil

A ação desencadeou um processo judicial da União contra o governo da Bahia para anular os títulos ilegais e a causa tramitou no Supremo Tribunal Federal (STF) até 2012, quando conquistaram o direito à terra original. Os 30 anos de luta foram marcados por conflitos de posse com grileiros e interrupções judiciais por liminares de sucessivos governos do estado.Os Hã-Hã-Hães hoje em diaAtualmente, os Pataxó Hã-Hã-Hães habitam a Reserva Indígena Caramuru-Paraguassu, no sul da Bahia, nos municípios de Itajú do Colônia, Camacã e Pau-Brasil, além de viverem também na Terra Indígena Fazenda Baiana, no município de Camamu, no baixo-sul da Bahia. No total, a terra demarcada tem 54 mil hectares, quase o total da reserva dos anos 1920.

Área da Reserva Indígena Caramuru-Paraguassu

|  Foto: Reprodução/ISA

A decisão do STF anulou 186 títulos concedidos a fazendeiros, que resultou na remoção deles das terras e na posterior indenização por benfeitorias. Mas segundo o Mapa de Conflitos envolvendo Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil, mesmo após a demarcação das terras dos Hã-Hã-Hãe, a região ainda é marcada pela violência, disputas e assassinatos por conta da insegurança jurídica.De acordo com o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), em janeiro de 2024, ao menos 200 fazendeiros tentaram realizar uma reintegração de posse ilegal no município de Potiraguá, no sudoeste da Bahia, que faz parte do território Caramuru-Paraguassu.

Indígenas Pataxó-Hã-Hã-Hãe se defendem durante ataque de grileiros

|  Foto: Povo Pataxó Hã-Hã-Hãe/Reprodução/CIMI

O ataque promovido pelo movimento de grileiros Invasão Zero resultou no assassinato a tiros da liderança espiritual Maria Fátima Muniz de Andrade Pataxó Hã-Hã-Hãe, conhecida como Nega e também feriu o cacique Nailton Pataxó Hã-Hã-Hãe e outros indígenas.Além da violência na região, outro ponto a ser questionado é a infertilidade das terras recuperadas, como aponta Sampaio. “É terra arrasada, porque foram 80 anos de invasão de fazenda, então o que é que você tem lá hoje? Pasto improdutivo. Ou seja, os Hã-Hã-Hãe estão no controle do seu território, sim, mas o seu território não presta.”Hoje em dia, a principal atividade econômica é o plantio de cacau, hortaliças e a criação de gado. E apesar da má qualidade dos pastos deixados pelos fazendeiros, os indígenas tiveram uma participação essencial na revitalização da feira livre de Pau Brasil, um dos municípios próximos à reserva.

|  Foto: Fernando Quá/ASCOM/PMPB

“Isso é interessante, porque quando os fazendeiros estavam na área não tinha feira, porque o município produzia comida e boi para exportação. Tanto que as pessoas da cidade me disseram isso, quando eu estive lá na época, que sempre ouviam falar que quando os índios tomassem a terra de volta, a cidade ia acabar. E não, os índios tomaram a terra de volta e agora a cidade tem feira, isso é impacto importante”, conta Sampaio.*Sob supervisão dos editores Bianca Carneiro e Jefferson Domingos

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