Saiba as diferenças do livro e do filme ‘Ainda Estou Aqui’, como o retrato de Eunice

O filme “Ainda Estou Aqui” e sua corrida pelo Oscar renovaram o interesse pelo livro de Marcelo Rubens Paiva, publicado pela Alfaguara em 2015.

Quem busca a obra original, no entanto, pode se surpreender com diferenças significativas entre ela e a adaptação, seja por perceber que alguns temas são mais aprofundados no livro, seja por notar que grande parte do material não chegou às telas.

O longa, mais sintético, adapta menos da metade do livro de Paiva, cujo grande assunto é a memória. Reflexões sobre a capacidade do cérebro de armazenar informações sobre momentos vividos e sobre a doença de Alzheimer de Eunice Paiva são cruzadas com a discussão sobre o passado do Brasil e como o país lida com sua história, que é menos linear do que o filme.

Após um preâmbulo inicial em que o autor discorre sobre a natureza das lembranças, a narrativa começa com um episódio de 30 de janeiro de 2008, quando Paiva, Eunice e sua filha mais velha, Veroca, foram ao Fórum João Mendes, no centro de São Paulo, para solicitar a interdição de Eunice, que já apresentava um quadro avançado da doença.

Na sequência, Paiva salta para 23 de fevereiro de 1996, quando sua família enfim conseguiu o certificado de óbito de seu pai graças à Lei dos Desaparecido – cena que, no filme, serve como uma ponte para separar a parte principal da trama, ambientada em 1970, do epílogo, em que Fernanda Montenegro interpreta Eunice, já idosa, reconhecendo na televisão o marido assassinado, e que também aparece no final do livro.

É só a partir do sétimo capítulo, após um terço da história, que a trama do livro se aproxima mais do filme. O leitor passa a conhecer o dia a dia da casa carioca, sempre cheia de visitas, e aparecem personagens como Fernando Gasparian e Baby Bocayuva, que militaram junto a Rubens contra a ditadura. No entanto, essa convergência dura pouco.

O livro avança além dos acontecimentos retratados na adaptação, acompanhando a vida da família Paiva após o retorno a São Paulo, a trajetória universitária de Paiva, a formação de Eunice em Direito e sua atuação na defesa dos povos indígenas, além do agravamento de sua doença.

Ao contrário da longa, o livro narra a tortura de Rubens, reconstruída a partir da imaginação de Paiva e de relatos como de Marilene Corona Franco, outra presa, e do capitão Ronald José Motta Baptista de Leão, militar envolvido nas torturas. Paiva também fala da militância de Rubens no começo da ditadura.

Logo após o golpe, seu pai tentou escapar de Brasília, onde morava, em um avião, que foi interceptado e obrigado a pousar. Após fugir de soldados, Rubens se refugiou na embaixada da antiga Iugoslávia até conseguir um salvo-conduto para deixar o país, em junho de 1964.

Ainda no mesmo ano, durante um voo para o Uruguai com escala no Rio, fugiu do aeroporto e voltou ao Brasil. Dois anos depois, em 1966, mudou-se para a casa do Leblon, cenário do filme.

Ainda, o livro possui mais espaço para trabalhar com as nuances de Eunice, embora ela seja sempre retratada sob a perspectiva subjetiva de Paiva. O escritor descreve sua mãe como uma heroína, que soube manter a postura diante das piores dores e cuidar de sua família e de outras pessoas, mas, ao mesmo tempo, como uma mulher fria, calculista e vaidosa. “Era prática, culta, magra, sensata, workaholic. Tudo o que não se quer de uma mãe”, escreve.
Na segunda metade do livro, Paiva conta que sua mãe se negava a vender quadros e móveis caros mesmo diante de dificuldades financeiras e que, certa vez, a flagrou enchendo uma garrafa de uísque importado com um destilado caseiro, para servir às visitas. Ela não queria que os outros pensassem que sua situação havia piorado após a viuvez.

Seu pai também ganha complexidade. No relato, antes da mudança para o Rio, Rubens tirou Paiva de uma escola construtivista e o colocou em uma instituição pública, com medo de que o filho se tornasse “afeminado”. O escritor também questiona a obstinação do pai, que arriscou sua segurança e a da família até o último momento, em vez de fugir para o exterior quando o cerco da ditadura se fechava.

Uma discussão apenas insinuada no filme, mas mais presente no livro, é a diversidade dentro das forças armadas. Assim como na obra original, o longa retrata um soldado que se solidariza com Eunice enquanto ela está presa no Dops e diz não concordar com o que estava acontecendo. Paiva, porém, aprofunda essa questão, afirmando que muitos militares se opuseram ao regime. “Sempre soubemos que nosso inimigo não vestia farda. Era um regime, não uma carreira.”

O autor também deixa claro que pertencia a um estrato privilegiado da população, e conta como usou a carteira da OAB de sua mãe para se livrar da polícia, carteirada comum a filhos de advogados, juízes, promotores, deputados e ministros. “Devem ter se arrependido do local da batida policial e decidido fazer uma blitz num bairro mais pobre”, afirma. Mais para frente, escreve sobre a perseguição aos indígenas na ditadura e sobre a atuação de sua mãe, como advogada, em defesa dos povos originários.

Em outra passagem, especialmente contundente, ao tratar da tortura, o autor traça um paralelo entre os abusos cometidos durante a ditadura e a violência policial que persiste contra grupos marginalizados. Ele compara o que aconteceu com seu pai ao caso de Amarildo Dias de Souza, pedreiro preso em 2013 pela Polícia Militar, e narra outros episódios semelhantes.

“Testemunhas ouviram Amarildo ser torturado por choques elétricos num contêiner anexo à UPP [A Unidade de Polícia Pacificadora instalada na favela da Rocinha]. Meu pai foi torturado num prédio do Pelotão de Investigações Criminais (PIC), onde funcionava o DOI, anexo ao I Exército, e testemunhas o ouviram gritar.”

“Retiraram o corpo como retiraram o corpo do meu pai, sem testemunhas, sem alarde.”

AINDA ESTOU AQUI
– Quando: Em cartaz nos cinemas
– Classificação: 14 anos
– Elenco: Fernanda Torres, Selton Mello e Fernanda Montenegro
– Produção Brasil, 2024
– Direção: Walter Salles

AINDA ESTOU AQUI
– Preço: R$ 79,90 (296 págs.); R$ 27,90 (ebook)
– Autoria: Marcelo Rubens Paiva
– Editora: Alfaguara

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