Estudante de 14 anos que passou em medicina em 2013 fez transição de gênero e hoje estuda direito


‘Se eu pudesse voltar no tempo, não teria feito’, diz Tatiane Galdino, sobre a experiência de entrar no curso de medicina aos 15 anos. A jovem passou por transição de gênero e busca mudar de profissão. Jovem que começou a cursar Medicina aos 15 anos diz que decisão foi um erro
Na vida da médica Tatiane Galdino, de 27 anos, muita coisa aconteceu bem cedo. As primeiras aulas na universidade começaram quando ela tinha 15 anos. O diploma de medicina chegou aos 20 anos. Após problemas na saúde mental pelo ritmo intenso, agora, ela busca se conhecer melhor como uma mulher trans, cursa direito e sonha em se tornar professora.
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Tudo começou quando ela fez o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) com 14 anos, quando ainda era identificada como homem cisgênero. O Enem apenas um teste, pois era aluna do 1º ano do ensino médio. No entanto, conseguiu uma pontuação suficiente para ser aprovada em medicina no campus de Sobral da Universidade Federal do Ceará (UFC).
A surpresa pelo bom resultado foi seguida da decisão de tentar ingressar na faculdade. Com medida judicial, ela obteve um parecer favorável do Conselho Estadual de Educação para “pular” o 2º e o 3º ano. À época, a jovem recebeu o diploma do Ensino Médio após fazer uma prova para demonstrar que dominava os conteúdos previstos para o período.

➡️ No edital do Enem, os “treineiros” são os participantes que vão concluir o ensino médio após o ano letivo correspondente à prova ou que não estejam cursando ou não concluíram o ensino médio. Estão submetidos às mesmas regras que os demais. No entanto, os resultados deles são divulgados 60 dias depois em relação aos demais candidatos e devem ter apenas o objetivo de autoavaliação. Desta forma, não podem ser utilizados para ingresso na graduação.
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➡️ A Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) estabelece que o ensino superior abrange cursos abertos a candidatos que tenham “concluído o ensino médio ou equivalente”. Na última década, estudantes que ficaram entre os aprovados em cursos de graduação antes de terminar o Ensino Médio conseguiram garantir vagas nas faculdades por meio de ações na Justiça.
Tatiane entrou na graduação em 2013, sendo bem mais jovem que os colegas de turma, que tinham, em média, de 26 a 28 anos. Olhando para trás, ela considera que não tinha inteligência emocional para o que passou a vivenciar nos seis anos de faculdade.
“Hoje eu vejo que não foi uma coisa saudável, não foi uma coisa benéfica. É particularmente enlouquecedor quando você começa a lidar com questões que, pra um adolescente, são muito pesadas. Como morte, cuidados paliativos, decisões de vida ou morte… Eu preenchi a primeira declaração de óbito com 17 anos, então é uma coisa muito densa”, relata Tatiane ao g1.
A médica Tatiane começou o processo de transição de gênero há cerca de um ano
Arte g1
Nos estudos, ela continuou obtendo bons resultados. Tatiane se formou em 2018 com o grau Magna Cum Laude (“com grandes honras”, do latim) — uma distinção concedida pelas universidades para alunos com desempenho acadêmico elevado.
Dentre os critérios para receber a distinção na UFC, os estudantes precisam ter alto rendimento nas notas e não podem ter reprovações ou trancamentos de disciplinas no currículo.
Transtornos emocionais
Tatiane cursava o segundo ano da graduação quando surgiram os primeiros sintomas de ansiedade. Posteriormente, ela também foi diagnosticada com transtorno afetivo bipolar, um distúrbio marcado pela alternância entre períodos de depressão e euforia. À época, a estudante ainda não havia passado pela transição de gênero.
Tendo aulas de manhã e de tarde e, por vezes, à noite, a jovem lembra que conseguia manter uma rotina de exercícios físicos e uma alimentação saudável durante a faculdade. No entanto, o sentimento era de estar alguns passos atrás dos colegas adultos por não ter maturidade para lidar com a carga emocional.
“Eu me arrependo? Não, porque foi parte do meu processo, e cada pessoa tem seu processo. Mas é uma coisa que, se eu pudesse voltar no tempo, eu não teria feito. Você querer amadurecer dessa forma é muito diferente de amadurecer enquanto você ainda está sob a custódia dos seus pais, quando você ainda está num ambiente relativamente seguro”, comenta.
Para Tatiane, manter o bom desempenho como estudante em um ambiente competitivo foi uma das dificuldades para a saúde mental. Outro fator foi a expectativa criada após a repercussão por ter entrado na faculdade tão cedo.
“Você deixa de ser uma pessoa e passa a ser uma estrela. E é uma das piores experiências que uma pessoa pode passar porque esse processo, principalmente da maneira como eu passei, num curso particularmente competitivo, é um processo desumanizante. E pra alguém que tá ainda amadurecendo questões de inteligência emocional, autoconhecimento e questões mesmo de visão de mundo, é uma coisa muito destrutiva”, avalia.
A jovem conseguiu procurar ajuda profissional depois que os problemas se agravaram no ano de 2021. Ela já atuava como médica e enfrentava desafios, como o alcoolismo e a dependência de medicamentos para dormir. O caminho para uma vida mais equilibrada se abriu quando ela chegou ao diagnóstico e ao tratamento para os transtornos emocionais.
Um tempo para se entender
Tatiane Galdino pretende deixar de atuar como médica para se tornar professora no futuro
Arquivo Pessoal
Sete anos depois de concluir a graduação, Tatiane tem no currículo uma atuação como médica generalista na atenção primária, plantonista e especialista em saúde mental. Ela esteve também na linha de frente como profissional de saúde na pandemia de Covid-19. No início de 2025, ela resolveu buscar alternativas para deixar a profissão.
A decisão envolveu reflexões sobre o que ela realmente quer fazer. Ela entendeu que a medicina não está na sua vocação. “É uma coisa que meio que me foi imposta. O colégio tem sua parte de culpa, os meus pais têm sua parte de culpa, eu tenho minha parte de culpa”, comenta.
Agora estudante de Direito, Tatiane sonha em se tornar professora. E diz que estar em sala de aula está mais alinhado com a preferência pelas Ciências Humanas, pelas leituras e por situações em que ela se sente estimulada intelectualmente.
Sexualidade
Dar atenção à própria sexualidade também foi uma dimensão que ela passou a priorizar. Há pouco mais de um ano, ela deu início à transição social e à transição hormonal, se identificando como uma mulher trans.
“Eu digo muito que eu não tive adolescência: eu pulei da infância direto pra fase adulta. Eu não tive tempo de me descobrir, eu não tive tempo de amadurecer, eu não tive tempo de me explorar. E tudo isso acabou acontecendo durante a fase adulta”, reflete Tatiane.
Para ela, o tempo conturbado da adolescência fez com que ela deixasse de lado essa compreensão sobre si. Olhando para a própria história em retrospectiva, ela entende hoje que nunca havia se identificado como um homem cisgênero.
A transição de gênero foi um processo que contou com apoio da ex-esposa de Tatiane, que continua sendo uma amiga presente na vida dela.
Para o futuro, a jovem espera encontrar um estilo de vida que faça sentido, mesmo trabalhando com alguma atividade que não traga tanto retorno financeiro ou prestígio social como a medicina.
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