Inteligência Artificial: atalho perigoso?

Do Liquidificador à IA: O Desafio de Ensinar a Pensar

Há anos comento que tecnologia é como liquidificador: podemos fazer um excelente suco ou arrancar o dedo fora, a depender de como usamos. Podemos ensinar uma criança a preparar uma vitamina em um liquidificador, mas temos que estar por perto para certificar que tenha colocado as frutas e água ou leite nas quantidades certas e que tenha tampado corretamente, do contrário, ao ligar aquele eletrodoméstico, espalhará tudo pelos áreas.

Conhecimento na Era do Clique

Com o advento da internet é a mesma coisa. Na minha infância, eu tinha que percorrer um longo trajeto de ônibus para chegar na única biblioteca da região. Para aproveitar a viagem, passava o dia todo ali, me alimentando como podia (ovo cozido, batata doce, pão ou o que podia levar no meu bornal). Hoje qualquer criança e adolescente tem as bibliotecas do mundo as mãos, sem a limitação da língua, considerando que podemos traduzir a maioria dos texto com um click.

A Cartolina de Ontem e os “Chats” de Hoje: O eterno jogo do atalho

Depois de horas de leituras e anotações, eu regressava para casa e ali depurava o que podia, com as limitações cognitivas e produzia o “trabalho” autoral solicitado pelo (a) professor (a). De outro modo, colegas de sala optavam por caminhos mais fáceis, recortando revistas e jornais e produzindo colagens em cartolinas risíveis que, não raro, recebiam melhores notas que as reservadas a mim. Quem não se lembra dos colegas que colavam recortes de revistas em cartolinas, montando trabalhos tão frágeis quanto a cola branca que usavam?

As IAs reproduzem esse dilema

Com o advento da chamadas Inteligências Artificiais – IAs, que não são nem artificiais e tão pouco inteligentes, voltamos ao dilema que enfrentei na infância: com as diferentes IAs, os estudantes podem fazer um excelente trabalho acadêmico, consultando fontes confiáveis, desenvolvendo ideias e reflexões autorais ou produzir uma mísera colagem em uma cartolina qualquer. De outro modo, podem fazer um excelente suco ou arrancar o dedo fora.

Perguntar Bem ou Copiar Mal?

No semestre passado solicitei a uma das turmas que elaborassem um paper sobre um determinado tema e os orientei para que usassem inteligência artificial e indicassem na apresentação do trabalho qual (ais) a (s) pergunta (s) formulada (s) à IA e qual (ais) IA (s) utilizaram.

O Problema Nunca Foram as Respostas, Mas as Perguntas

E aí veio o “pulo do gato”. Desprezei as respostas geradas pelas inteligências artificiais e convidei os estudantes para avaliar criticamente as PERGUNTAS formuladas. É ali que está o nó da questão. Ao analisar a qualidade, sofisticação e profundidade de cada uma das perguntas formuladas pude avaliar o quanto cada um deles sabia a respeito do assunto estudado, quais as dúvidas que ainda tinham e quais certezas imaginavam ter. Dali pude verificar o aprendizado e revisar algumas passagens das aulas.

Ou seja, não há que temer as IAs em ambientes acadêmicos. Seguiremos com dois tipos de estudantes, os que produzem trabalhos autorais e os que realizam colagens em cartolinas digitais.

ChatGPT, Trabalhos Acadêmicos e a Cultura do Atalho

 As IAs, de um certo modo, são espelhos distorcidos: refletem o que colocamos nelas. Se um estudante só sabe perguntar superficialmente, a IA devolverá superficialidade, ainda que vestida por uma roupagem técnica. Mas quando treinamos o olhar crítico sobre o próprio questionar, a ferramenta vira aliada. 

Eis o desafio para educadores: a elaboração de perguntas complexas e contextualizadas emerge não apenas como resultado de uma metodologia, mas da prática pensada no cotidiano, emerge a partir do interesse legítimo de ensinar e de aprender a formular perguntas que exigem ao menos três elementos: 

– Contextualização (social, histórica, geográfica, econômica, ambiental etc.) 

– Diálogo interdisciplinar 

– Autoconsciência das limitações da própria área 

Nesse sentido, a batalha não é contra as Inteligências Artificiais, mas contra a cultura do atalho – tão presente nas cartolinas dos anos 80-90, quanto nos “Ctrl+C, Ctrl+V” de hoje.

O liquidificador está ligado. Cabe a nós decidir se faremos suco ou arrancaremos o dedo.

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