Tradição e ancestralidade: estudo destaca a importância da agricultura familiar na conservação de sementes crioulas

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Algumas famílias cultivam espécies de sementes crioulas há mais de 150 anos (Foto: arquivo pessoal)

Agricultores/as camponeses e quilombolas de Rio Pomba, município a cerca de 70 quilômetros de Juiz de Fora, guardam há mais de um século diversas espécies de sementes crioulas, também chamadas, na Zona da Mata, de sementes paiol. Além dos benefícios para a saúde já conhecidos, elas desempenham um papel fundamental diante das mudanças climáticas por terem a capacidade de se adaptar ao ambiente e, consequentemente, ao clima em que foram plantadas. Somente no município mineiro, existem 43 espécies e 148 variedades de plantas cultivadas, distribuídas em 19 famílias botânicas. O levantamento é resultado de uma pesquisa de mestrado do Programa de Pós-Graduação em Agroecologia da Universidade Federal de Viçosa (UFV) que buscou entender as dinâmicas da agricultura familiar camponesa que colaboram para a conservação dessas sementes, mesmo diante da pressão para o uso de sementes comerciais.

O estudo foi desenvolvido pela agroecóloga Camila Raimunda Carvalho sob orientação dos professores Irene Maria Cardoso  e Gabriel Bianconi Fernandes, com o apoio da rede agroecológica da Zona da Mata, que, desde os anos 1980, atua no fortalecimento da agricultura familiar, da agroecologia e das sementes crioulas. Em 2018, a Zona da Mata foi reconhecida como Polo Agroecológico e de Produção Orgânica, o que reforça a forte presença da agricultura familiar e de comunidades tradicionais na região. A pesquisa encontrou variedades que são cuidadas pelas mesmas famílias há mais de 150 anos, como é o caso do milho cunha e do feijão cajuri. Além disso, foi possível identificar que cerca de 80% das sementes são adquiridas com os próprios familiares, que as repassam de geração em geração, ou em trocas com os vizinhos. Outras não se sabe a origem ou são adquiridas em feiras e encontros agroecológicos, compradas ou recebidas de instituições públicas. 

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“Além de ser um bem agrícola, a relação que as comunidades têm com suas sementes é tão forte que elas se tornam um elemento central na vida social, cultural e econômica dessas comunidades. Cultivar e conservar essas sementes são a forma das comunidades se fortalecerem e preservarem suas culturas e identidades”, explica Camila. 

Os sistemas agrícolas camponeses e tradicionais são complexos, com grande diversidade de espécies e, conforme a pesquisadora, nem sempre são reconhecidos pela sociedade. “Ao longo das gerações, agricultores/as camponeses e os povos e as comunidades tradicionais construíram, localmente e em interação com a natureza, seus conhecimentos acerca das práticas agrícolas para o cultivo dos alimentos sem o uso de agrotóxicos e fertilizantes comerciais. O uso de sementes crioulas é um componente importante destas práticas, e elas são ao mesmo tempo fruto desta interação com a natureza. Então, pode-se dizer que as sementes crioulas são frutos do conhecimento tradicional.”

 

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(Foto: Arquivo pessoal)

Benefícios e desafios 

As sementes crioulas se reproduzem por sementes, como é o caso do milho, do feijão, da abóbora, do alho e da batata-doce. Essas espécies são cultivadas, selecionadas e conservadas pela agricultura familiar camponesa e pelos povos e comunidades tradicionais. A qualidade do alimento produzido é um dos principais motivos que levam os/as agricultores/as a cultivarem as sementes crioulas. “O uso de sementes crioulas, entre outras práticas comuns à agricultura familiar, permite o cultivo de alimentos agroecológicos sem agrotóxicos e com diversidade. Os alimentos de qualidade e a diversificação alimentar contribuem diretamente para a saúde da família e de quem adquire esses alimentos.” Outros fatores como autonomia em relação ao mercado, a resistência das sementes aos ataques de pragas e doenças, a não necessidade de uso dos agrotóxicos, a tradição e a ancestralidade também impulsionam a continuidade dessa prática.  

Os/as agricultores/as também apontam desafios relacionados à conservação dessas sementes, sendo o maior deles a falta de reconhecimento pela sociedade da importância das sementes crioulas. De acordo com Camila, outro desafio está associado ao cultivo do milho para a silagem. “O cultivo para a silagem é, principalmente, feito com o uso das sementes transgênicas. A narrativa de produtividade e facilidade de cultivo associada aos transgênicos faz com que muitos agricultores/as deixem de utilizar as sementes crioulas. O cultivo dessas sementes está, frequentemente, associado ao uso de agrotóxicos, em especial ao glifosato, de comprovada ação prejudicial à saúde do ambiente, incluindo os seres humanos. O cultivo de milho transgênico pode facilmente contaminar as sementes crioulas e é, atualmente, a maior ameaça à elas.” 

Importância ambiental das sementes crioulas 

Camila ressalta que essas sementes são importantes não só para a autonomia das famílias que vivem em áreas rurais, mas para toda a sociedade. “Elas possibilitam a produção de alimentos de qualidade que, além de serem utilizados pela família, são comercializados, principalmente, no mercado local, como feiras, e no mercado institucional, como no PNAE (Programa Nacional de Alimentação Escolar).” A pesquisadora explica que as sementes crioulas são mais adaptadas às condições ecológicas onde são plantadas por serem cultivadas por anos no mesmo lugar, o que favorece à resistência às pragas e doenças e à produção em condições climáticas e de solo locais. Dessa forma, as famílias conseguem produzir mesmo quando há diversidades relacionadas ao clima, como o aumento da temperatura e as secas prolongadas. 

“As famílias gastam menos dinheiro para produzir, pois não precisam comprar sementes e outros insumos, o que pode levar à diminuição do preço dos alimentos. Enfim, as sementes crioulas contribuem para a soberania alimentar das famílias agricultoras e para a segurança alimentar de toda à sociedade”, diz. 

‘É a semente que resiste’ 

Aos 66 anos, Maria de Fátima Barbosa Silva é uma das responsáveis por perpetuar exemplares de sementes crioulas. Ela vive na comunidade quilombola dos Coelhos, em Rio Pomba, e conta que já nasceu sendo agricultora. “Nós já nascemos na roça, a mãe já levava a gente pequeninho, deixava no balaio e ia cuidar da plantação. Quando a gente cresceu e aprendeu a falar alguma coisa, já colocaram a gente pra ajudar a fazer.” Na sua terra, ela e seu irmão cultivam milho, feijão, arroz, abóbora… “de tudo um pouco”, diz dona Fatinha, como é conhecida na região.  

“Hoje em dia, tem muita sementes, mas não são aquelas sementes resistentes. Elas precisam de muito agrotóxico para resistir e sair bonitas. As crioulas precisam de cuidado, mas é com compostos que a gente junta aqui, como esterco de galinha, boi, porco. Agora, as sementes de hoje, se você botar esses estercos, não vinga”, afirma a agricultora.     

Por muitos anos, essas sementes foram trocadas entre propriedades vizinhas. “É a semente que resiste, de toda vida. Os pais da gente não tinham o milho para comprar, eles trocavam no paiol do outro compadre e iam passando… era assim.” Ainda hoje, famílias como a de Dona Fatinha buscam novas sementes, mas não da mesma forma e com uma dificuldade maior em encontrar. Com o apoio do projeto Troca de Saberes, promovido pela Universidade Federal de Viçosa (UFV), os/as agricultores/as saem em caravana em busca de novas espécies. “É para a saúde das pessoas. Quando a gente encontra, é um pulo de alegria. Eu passei a dar milho transgênico para as galinhas e elas cuspiram. Se as galinhas tão cuspindo, a gente vai comer? A gente luta aqui para que as pessoas plantem coisas boas.” 

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