Na teoria, a prática é outra (ou faça o que eu digo mas não faça o que eu faço)

Na teoria, a prática é outra. Cresci ouvindo minha mãe, a saudosa dona Maria Helena, como eu e papai a chamávamos com carinho e leve ironia, dizer essa frase. Que ela possivelmente ouvira do pai, meu avô Crisanto e da avó Rosa. Ou seja, uma tradição de família. Mas evoquei essa máxima por lembrar de mamãe, que foi a pessoa que, na minha percepção, mais viveu a vida prática, cotidiana da maneira que apregoava na teoria. Mama, como eu também a chamava, apesar de amorosa, era dura, quase inflexível, do tipo leu não deu, o pau comeu, adepta da lei de Talião: olho por olho, dente por dente. Para ela também, não só para os outros, é necessário dizer.

Sim, necessário porque percebo, nesses tempos líquidos vaticinados por Bauman, um fosso cada vez maior entre o mundo das idéias (teoria) e as ações do dia a dia (prática). É certo que sempre foi assim, derna tempos medievais os mesmos papas que pregavam santidade faziam lá suas orgias, mas hoje me parece que fatores como mundo digital e redes sociais tornaram essa dinâmica mais complexa.

Como já escrevi por aqui, de manhã, mal acesso as redes sociais sou bombardeado com verdades absolutas e lições de vida de amigos e conhecidos. Faça isso, diga aquilo, aja desta forma. Por que é amor é assim, a felicidade é assado, e você tem que isso e aquilo e mais isso. Um catálogo de lições que, na teoria, mudariam minha vida para melhor. Mas aí, com certo bom humor, eu me pergunto: esse pessoal vive na prática o que compartilha nos feed e stories da vida, digo, do Instagram? 

Aí depois da terceira ou quarta xícara de café, ainda rolando as postagens edificantes, desce o santo de Maquiavel em mim e começo a lembrar que aquele sujeito que dá lições sobre filhos não paga há anos a pensão da filha dele. Que aquela amiga que condena impulsos já se bandeou para Recife de madrugada para ver um cara que conheceu pelo messenger e levou um bolo dele. Que o militante pelos direitos LGBTQIA+ não fala há anos com o irmão dele, gay assumido. Que o conhecido que vocifera contra corrupção dos políticos tem uma sinecura num órgão público. 

Mas longe de mim apontar o dedo. Somos todos pessoas complexas e contraditórias, eu incluso. Quantas vezes não devo ter tropeçado no fio da navalha entre teoria e prática. Mas é necessário registrar que as redes sociais fizeram a cultura do faça o que eu digo mas não faça o que eu faço se tornar mais visível e praticamente cotidiana. Antes flagrávamos as contradições dos amigos em papos ocasionais em bar ou eventos sociais. Hoje os próprios amigos fazem questão de exibir suas teorias e, consequentemente, suas contradições se conhecermos a vida real deles, em tempo real. Sistemática e cotidianamente. Faz parte, claro, destes tempos de pós-verdade e Inteligência Artificial. SE atualmente é possível gerar imagens “reais” de nós mesmos como aristocratas franceses ou do papa jogando bola com Lennon, por que não podemos ter dois perfis, duas vidas: uma para a teoria, uma para a prática. Na prática das redes sociais, a teoria sempre vai ser outra, bem melhor. E com uns filtros, claro, para corrigir a luz, tirar as rugas e melhorar a imagem.

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