América Latina: uma democracia resiliente?

Em 2024 a Corporação Latinobarômetro sediada em Santiago, no Chile que desde 1995 faz pesquisas anuais de opinião pública e atualmente utiliza em torno de 20 mil questionários em 18 países da América Latina, publicou o seu Informe anual (118 páginas) com o título América Latina: uma democracia resiliente.

É importante registrar que as pesquisas de opinião do Latinobarômetro tem se tornado uma referência, por sua  credibilidade, abrangendo um amplo conjunto de temas como economia, violência e criminalidade, partidos políticos, parlamentos, sobre apoio a democracia e também a indiferença ao tipo de regime, a confiança interpessoal, nas instituições e governos, no judiciário, Forças Armadas, meios de comunicação, igrejas, sindicatos, e ainda análise, com base nos dados das pesquisas, sobre eleições, voto e representação política, corrupção, mudanças climáticas etc.

Em 2023 o titulo do Informe foi A recessão democrática. O que mudou de um ano para outro?,Em 2023,  resumidamente, se refere ao “descenso e vulnerabilidade dos países da região depois de uma década de deterioração contínua e sistemática da democracia” e que se expressa no seu baixo apoio (menos da metade da população dos países da região), no aumento da indiferença ao tipo de regime e atitudes em favor do autoritarismo, o colapso do desempenho dos governos e a imagem dos partidos políticos. E nesse sentido “A democracia em vários países se encontra em estado crítico, enquanto outros ainda não têm democracia”.

Os dados da pesquisa do Informe 2024 constatou o que eles consideraram como uma surpresa: um aumento de quatro pontos percentuais de apoio à democracia, chegando a 52% e também “Um recorde de expectativas econômicas pessoais positivas”.

Assim, pelos dados disponíveis, a deterioração democrática, contínua desde 2010 “se deteve e se reverteu”.

Mesmo considerando um aumento de quatro pontos percentuais – esta é uma média geral, com variações entre os países – 48% não apoiam e isso pode pavimentar o caminho da extrema direita, como ocorreu em El Salvador com a reeleição de Nayib Bukele no início de 2024, na Argentina com a eleição de Javier Milei em novembro de 2023 e antes, em 2018, no Brasil, com a vitória eleitoral de Bolsonaro.

No entanto é importante registrar que, apesar disso, também houve vitorias eleitorais expressivas contra a extrema direita no Brasil e Colômbia, em 2022, com a eleição de Lula e Gustavo Petro, respectivamente e em 2024 no México (Claudia Sheinbaum) e Uruguai (Yamandú Orsi). Antes, em 2021 com Pedro Castilho no Peru e Gabriel Boric no Chile.

Em relação à democracia o Informe, no capítulo III  (Três séculos em quatro décadas)  analisa dados compostos por vários itens, como apoio e satisfação com a democracia, perfil sócio-demográfico, a indiferença ao tipo de regime, a preferência por um regime autoritário e atitudes frente ao autoritarismo.

Na introdução do capítulo cita Albert Hirschman (1915-2012),economista alemão, especialista em desenvolvimento econômico, autor de vasta obra, inclusive sobre a América Latina (ver o artigo Albert Hirschman na América Latina e sua trilogia sobre desenvolvimento econômico de Ana Maria Bianchi, professora da Universidade de São Paulo (USP) publicado Econ. soc. 16 (2)Ago 2007 disponível em  https://www.scielo.br/j/ecos/a/GqZDD5XmKY3NYJgQj56wGhw/)  que se refere ao livro clássico de Thomas H. Marshall sobre cidadania, afirmando que “Três séculos foi necessário para os avanços civilizatórios: o século XVIII como o século da cidadania civil, o século XIX como o século da cidadania política e o século XX como o século da cidadania socioeconômica, que leva ao Estado de Bem-Estar”.

Thomas Marshall foi professor emérito da Universidade de Londres e também diretor do Departamento de Ciências Sociais da UNESCO. Em 1963 publicou um livro que se tornou uma referência nos estudos sobre cidadania. Trata-se de Cidadania, classe social e status, publicado no Brasil em 1967 pela Zahar Editores (Rio de Janeiro).

O livro é uma coletânea de ensaios, baseado em suas pesquisas, que tratam de temas como a igualdade social, riqueza, educação, pobreza, conflitos de classe e bem-estar social. No capitulo  Cidadania e classes sociais em que trata mais especificamente da cidadania, é dividido em três partes para se “compreender os direitos que compõe à cidadania”: os civis, os políticos e os sociais, respectivamente nos séculos XVIII, XIX e XX.

Na introdução do livro, em sua versão em português, o cientista político norte-americano Phillip C. Schmitter – professor emérito do Departamento de Ciências Políticas e Sociais do Instituto Universitário Europeu – se refere a este capítulo como um clássico da Sociologia: “Nele o autor desenvolve o seu conceito de ‘cidadania’, e traça a interação entre a crescente igualdade política e a crescente desigualdade econômica, e mostra como, através da política social, o primeiro processo logrou modificar o segundo”.

A constatação, que vale não apenas para a Inglaterra, mas também para outros países, especialmente da Europa, é que de fato houve conquistas importantes que asseguraram direitos, como trabalhistas (jornadas de 8 horas, direito a férias, fim do trabalho infantil, etc.), a conquista do sufrágio universal -, direito de voto das mulheres, anafabetos   e muitos outros, que foram resultados de muitas lutas da classe trabalhadora e não concessões das classes dominantes.

Não foi fácil nem uniforme entre os países e como se afirma no Informe, os avanços e conquistas da cidadania em cada século foram respondidos “com gigantescas contraforças ideológicas, reacionárias, que levaram a retrocessos”.

No caso do Brasil e da América Latina em geral, países submetidos à exploração colonial, o processo não se deu dessa forma e as conquistas de direitos civis, político e sociais foram bem mais tardia. Se na Europa, por exemplo, foram três séculos para a consolidação da democracia na região, como descreve Marshall, “claramente pensar que se poderia fazer o mesmo em quatro décadas (na América Latina) era uma ilusão”.

A referência aqui são os anos posteriores aos processos de transição democrática, antecedidas na maioria dos países, por ditaduras.

E isto tem implicações para a democracia, suas conquistas e também os retrocessos constatados na região, com inúmeras ditaduras ao longo do século XX.

No Brasil, o historiador José Murilo de Carvalho publicou em 2001 um livro se tornou um clássico de sobre o tema. Trata-se de Cidadania no Brasil, o longo caminho (Editora Civilização Brasileira), no qual argumenta que no Brasil o processo de desenvolvimento da cidadania foi inverso em relação à sequência analisada por Marshall. Primeiro, os direitos sociais, implantados no país a partir da Revolução de 1930 – portanto, mais de quatro séculos do início da colonização e mais de 40 anos da Proclamação da República (previdência e direitos trabalhistas – jornada de 8 horas, férias, salário mínimo  etc., – depois os direitos políticos, que só se ampliaram com a Constituição de 1988 (embora a partir de 1945 o eleitorado tenha se ampliado progressivamente. Até 1930 não chegava a 5% da população) e só depois, o que ele chamou de “generalização dos direitos civis”.

Mesmo assim, foram mantidas as desigualdades sociais, políticas e econômicas que caracterizam não apenas a história do Brasil como dos países da América Latina em geral.

Mesmo considerando as diversidades, as pesquisas do Latinobarômetro desde 1995 têm constatado o déficit democrático na região e a novidade do Informe de 2024, embora considerando as debilidades das democracias,  é que ela se tornou resiliente em alguns países e que apesar dos “altos e baixos”  ainda não se conseguiu acabar com  as democracias, como tantos desejam, nem tampouco “desenganá-las”.

E no processo de consolidação das democracias, lento, com avanços e retrocessos, há questões centrais que permanecem e precisam ser enfrentadas, como as desigualdades sociais, o autoritarismo, com o crescimento da extrema direita em diversos países e que atentam contra a democracia e o Estado Democrático de Direito (como expressam golpes de Estado e/ou tentativas como ocorreu no Brasil recentemente).

Como consta no Informe “a democracia nesses 30 anos tem estado em perigo em numerosas ocasiões em vários países”, como no Brasil. Um lastro autoritário que mais de 40 anos do início do processo de transição da ditadura para a democracia ainda permanecem como ameaças, com lideranças autoritárias, autocráticas que falam em democracia, querendo fazer crer que são democratas só porque foram eleitos, quando na verdade não querem de fato uma democracia, mas uma ditadura.Como diz o Informe “os autocratas se vestem com a máscara de uma eleição para fazer-se passar por democrata”.

Em relação ao apoio à democracia, mesmo com um pequeno avanço em relação aos dados de 2023, ainda está baixo dos índices relativos aos anos de 2007 a 2017. A partir daí, por diversos fatores, houve uma piora nos índices que justificou o titulo do Informe de 2023 ( Recessão democrática). Se o índice de satisfação aumentou, há de se considerar que mais de 2/3 dos latino-americanos permanecem descontentes com a democracia (uma coisa é o apoio, outra é a satisfação com a democracia. No Brasil, por exemplo, o apoio aumentou para 45%, ainda assim, menos da metade da população e com 28% de satisfação). Há variações entre os países, de apoio e insatisfação . O país com maior apoio e satisfação é o Uruguai e o mais baixo, o Peru.

O fato é que em 10 países da América Latina, incluindo o Brasil, mais da metade da população não apoia a democracia.

Da mesma forma que instituições como os partidos políticos e os congressos, que são os piores avaliados. Quatro entre dez pessoas acreditam que seu país pode funcionar sem partidos, parlamentos ou oposição.

E um dado que revela um imenso desafio para a democracia (e os democratas) é que mais de 50% dos entrevistados afirmaram que não se incomodaria com um governo autoritário “desde que resolvessem os problemas do país” (embora não fossem especificados) e uma constatação preocupante é que quanto aos jovens: quanto mais jovem mais propenso ao autoritarismo. O que explica? Talvez uma pesquisa mais aprofundada, agregando outros dados, possa contribuir para sua compreensão.

Um dos problemas centrais da democracia na América Latina é que se há assegurado o direito ao voto (com todas as distorções que podem caracterizar um processo eleitoral, das fakes news, deepfakes, compra de votos, o primado do poder econômico, técnicas de micro direcionamento digital etc.) é que apesar disso, não há a plena cidadania. Como diz o Informe, o poder dos privados não eleitos nos parlamentos (que financiam campanhas eleitorais) e “países onde há enorme concentração de poder econômico e um Estado débil, a democracia custa muito impor a lei porque os que tem poder econômico têm demasiados instrumentos para desviá-la”.

A questão central é como fazer a democracia política produzir igualdade social. O desafio para as democracias é enorme em meio a um cenário no qual os partidos políticos e o parlamento e seus representantes estão desacreditados. A América Latina, pelos dados disponíveis nos Informes do Latinobarômetro e outros também é que os governos em geral, falharam em reduzir as desigualdades, a concentração de terras e riquezas, de impedir o monopólio dos meios de comunicação, com déficit nas áreas de segurança, saúde e educação e, portanto, ainda longe de assegurar a efetividade de direitos e garantias para todos, embora, registre-se, tenha havido avanços em países como o Brasil.

Apenas um dado, entre muitos do terceiro governo de Lula: o país atingiu o menor nível de pobreza da série histórica do IBGE iniciada em 2012. Os dados relativos a 2023 mostrou que 8,7 milhões de pessoas saíram da linha de pobreza entre 2022 e 2023 e no mesmo período, 3,1 milhões deixaram a extrema pobreza.

No entanto, a pobreza, a extrema pobreza e as desigualdades sociais ainda permanecem como grandes desafios para a resiliente democracia brasileira (e de outros países da América Latina), que deve enfrentar não apenas esse legado histórico, como a extrema direita, com todos os seus retrocessos, sociais, políticos e econômicos.

Nesse sentido, se não houver punição aos crimes que foram cometidos contra a democracia, como golpes ou tentativas de golpes de Estado, mesmo ela sendo resiliente, como se afirma no Informe do Latinobarômetro, pode ser um incentivo para a sua continuidade em particular em uma era de desinformação e teorias conspiratórias que envenenam a sociedade, as redes sociais e a política e  a colocam em risco.. Por isso que no caso do Brasil não deve e nem pode haver anistia aos golpistas, tanto aos que executaram quanto aos que financiaram e estimularam as tentativas de golpe, até porque, como afirma o jornalista, escritor e professor aposentado da USP, Flávio Aguiar, no artigo “Anatomia de um golpe fracassado” (publicado no dia 8 de janeiro de 2025 no site A terra é redonda)  ao analisar as debilidades da trama golpista “ não deve contribuir para subestimar os riscos que a democracia correu no país, nem que ainda pode vir a  ocorrer. A serpente não está morta. O cenário internacional, hoje mais adverso para a democracia do que há dois anos, continua a cevá-la” E se refere os “nervosismos do mercado e da mídia corporativa” para deslegitimar o governo Lula e “o seu programa de alcance social”, com o objetivo de enfraquecê-lo para a eleição de 2026 que, se não for atingido “certamente haverá quem pense em soltar de novo a serpente hoje contida, mas sempre de bote armado”.

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