Presidencialismo de coalizão e emendas parlamentares

O presidencialismo de coalizão é uma característica do sistema político brasileiro desde o final da ditadura em 1985. Em um artigo pioneiro sobre o tema, publicado em 1988 “Presidencialismo de coalizão: o dilema institucional brasileiro”, o cientista político Sérgio Abranches o definiu como “um sistema caracterizado pela instabilidade, de alto risco e cuja sustentação que se baseia, quase exclusivamente, no desempenho corrente do governo e na sua disposição de respeitar estritamente os pontos ideológicos ou programáticos considerados inegociáveis, os quais nem sempre são explícita e coerentemente fixados na fase de formação da coalizão”.

No entanto, ao longo dos vários governos que se sucederam à ditadura, de José Sarney (1986-1990) ao atual do presidente Lula, pode até ter havido o que o autor chama de “disposição de respeitar estritamente os pontos ideológicos ou programáticos considerados inegociáveis” mas não foi isso o que ocorreu.  Os presidentes sempre foram eleitos por um partido minoritário no Congresso Nacional, necessitando, para ter governabilidade, construir uma maioria e isso se fez (e se faz), com negociações, com “moeda de trocas políticas” (cargos, como ministérios e secretarias e outros da administração pública em seus vários escalões – e que se estende também aos estados, com os governadores e prefeitos) e em um Parlamento  com um grande número de partidos com representação, fica muito difícil estabelecer “pontos ideológicos ou programáticos inegociáveis”, até porque as alianças para se ter uma base de sustentação política não se estabelece tendo como fundamento princípios (inegociáveis) e programas (idem), exigindo por parte do Executivo uma grande habilidade política no processo de construção de maiorias,  com as negociações e concessões (e consequências) que se conhece.

Se, por um lado a coalizão evita uma paralisia decisória, é possível afirmar que hoje – e nos dois primeiros anos do governo Lula – é garantia de estabilidade política? O que explica as dificuldades enfrentadas pelo governo na sua relação com o Congresso Nacional?

Há vários aspectos e um deles diz respeito as mudanças institucionais no relacionamento do Executivo com o Legislativo,  com a perda de controle de parte significativa do orçamento da União, com as emendas parlamentares e o aumento do poder do Legislativo, em especial as modificações no orçamento público que devem ser cumpridas pelo Poder Executivo.

E nesse sentido a Emenda Constitucional n. 86, editada em 17 de março de 2015, portanto, ainda no governo de Dilma Rousseff, é fundamental porque transformou parte expressiva do orçamento que antes eram opcionais, em obrigatórias para emendas (individuais e de bancadas) que foi  referendado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2019.

Com isso, ampliou o poder do Legislativo nas discussões sobre a Lei Orçamentária e tornado o Executivo, em grande parte,  refém de suas demandas, diminuindo seu poder nas negociações como “moeda de troca” para fortalecer sua base aliada e garantir a aprovação dos seus projetos.

Há nesse processo de construção um custo elevado, que não garante necessariamente fidelidade dos partidos e parlamentares que a compõem e que impõe enormes desafios para a governabilidade.

Os fatos mais recentes sobre as emendas parlamentares expressam os desafios que o governo Lula terá nos dois próximos anos, envolvendo também decisões do Supremo Tribunal Federal sobre as emendas parlamentares. Vejamos

No dia 1º de agosto de 2024, o ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal, em resposta a uma Ação Direta de Inconstitucionalidade sobre a legalidade do formato das chamadas “emendas pix” do Congresso Nacional, determinou a suspensão do  seu uso (indiscriminado e sem transparência) com o objetivo de “devolver ao Executivo o controle da execução do orçamento público”. 

As emendas são (ou deveriam ser) utilizadas por senadores e deputados para enviar recursos para suas bases eleitorais, e ser feito com total transparência: quem enviou, os valores, a finalidade, para onde e a possibilidade de rastrear o uso desses recursos etc. Na decisão do ministro ficou claro que isso não estava ocorrendo e ele justificou a suspensão alegando que o objetivo era o de “impedir a continuidade de caminhos incompatíveis com a Constituição” na medida em que “os dados apontam que os instrumentos de planejamento são insuficientes, e os mecanismos de controle e transparência, inadequados para fiscalizar essas emendas”.

No dia 26 de novembro de 2024, o presidente Lula sancionou um Projeto de Lei aprovado pelo Congresso Nacional que tinha como um dos seus objetivos principais justamente dar mais transparência as emendas parlamentares (ficando subentendido, portanto, que não havia). O Projeto foi resultado de uma articulação entre o governo, o Congresso e o STF depois da decisão do ministro Flávio Dino de suspensão das emendas em agosto de 2024 (referendada pelo plenário) que tinha o objetivo dar maior transparência na liberação e uso dos recursos públicos.

No entanto, entidades ligadas à transparência pública, salientaram que apesar das intenções, o projeto não atendia a todos os critérios de transparência, como as emendas de comissão (que substituiu as emendas de relator – o orçamento secreto – que o STF decidiu ser inconstitucional) e um dos seus aspectos, que compromete a alegada transparência, é que não havia a identificação da autoria das emendas e, portanto, sem a possibilidade de saber quem propôs, valores etc.

No dia seguinte, 27 de novembro, foi enviada ao Supremo Tribunal Federal uma petição assinada pelas advocacias da Câmara dos Deputados e do Senado para que fosse “reconhecido o cumprimento das determinações de modo a autorizar a retomada da execução orçamentária das emendas impositivas individuais e de bancada”.

No dia 2 de dezembro, o ministro Flavio Dino autorizou, com ressalvas, a volta da liberação das emendas parlamentares, e exigiu mais transparência do que o Projeto aprovado pelo Congresso Nacional em novembro, que mudou parte das regras de distribuição de emendas.

Em um relatório de 65 páginas, o ministro Flávio Dino, afirmou que “Temos a gravíssima situação em que bilhões de reais do orçamento da nação tiveram origem e destino incertos e não sabidos” e que “Não é compatível com a Constituição Federal à execução de emendas ao orçamento que não obedeçam a critérios técnicos de eficiência, transparência e rastreabilidade, de modo que fica impedida qualquer interpretação que confira caráter absoluto à impositividade de emendas parlamentares” (o relatório está disponível aqui).

Dez dias depois, no dia 12 de dezembro, o presidente da Câmara dos Deputados, Artur Lira, decidiu suspender as atividades das comissões permanentes, inviabilizando a liberação de emendas. Por que ele fez isso? Segundo uma reportagem publicada no dia 16 de dezembro site da revista Piauí, assinada pelo jornalista Breno Pires, foi parte de uma manobra que se expressou na decisão da Mesa Diretora da Câmara dos Deputados para remanejar as emendas parlamentares de comissão, com o aval de 17 lideres de partidos (Progressistas, Solidariedade, PL, PDT, Republicanos, PRD, PV, PSDB, MDB, União,  Avante, Podemos, Cidadania, PSB, PSD e dois do PT, Jose Guimarães (CE) e Odair Cunha(MG) para eles mesmos decidirem e nesse sentido foi enviado um oficio ao governo, assinado no mesmo dia,  12 de dezembro, com 5.449 emendas, somando R$ 4,2 bilhões, incluindo 180 milhões “em novas indicações”, dos quais 40% seriam destinados ao estado do presidente da Câmara dos Deputados, Artur Lira (Alagoas) e ainda “outras alterações” que somavam R$ 98 milhões.

Uma manobra considerada ilegal porque dava poderes apenas a um grupo de lideres, acabando com outros tipos de emendas, e criando um mecanismo sem qualquer transparência, ao colocar um grupo de líderes partidários como solicitantes de emendas, sem especificar quem fez as indicações, valores etc.

No entanto, no dia 23 de dezembro, o ministro Flavio Dino suspendeu a liberação dos 4,2 bilhões, dando um prazo à Câmara dos Deputados – que não foi cumprido – para que se respondesse “objetivamente” a uma série de questionamentos sobre a destinação das emendas. Depois liberou uma parte,  uma exceção para permitir a movimentação de valores de emendas já depositadas nos fundos da saúde “ainda que não tenha  havido a abertura de contas específicas  para seu trânsito”, com prazo até 10 de janeiro de 2025 (A Advogacia-Geral da União -AGU orientou manter o bloqueio dos 4,2 bilhões de emendas).

Em seu despacho o ministro Flávio Dino citando um quadro do que chamou de “degradação institucional e inconstitucionalidade em série” e ainda lembrando (mais uma vez) que não existe no ordenamento jurídico brasileiro emendas de lideres e que a Constituição Federal trata exclusivamente sobre emendas individuais (de transferência com finalidade definida) e de bancadas (propostas pelos deputados e senadores). E ainda determinou a abertura de inquérito pela Polícia Federal para investigar possíveis desvios de finalidade.

Ele se referiu também a “balbúrdia” no caso das emendas e como disse Ricardo Kotscho no site do Uol em 31/12/2024 “na verdade é um grande escândalo de corrupção…o que nós estamos assistindo é um jogo de chantagem que começou em agosto e não tem prazo para acabar. Nós estamos falando de 50 bilhões de reais do orçamento federal que os deputados e senadores pegaram e ninguém sabe para onde foi, quem recebeu. Não há controle, não há nada”.

As distorções, resultado da falta de transparência são muitas, incluindo transferências de recursos por deputados e senadores para estados que não são o seu de origem (o que explica?) destinação de recursos sem prestação de contas etc. São muitos os denunciados sob suspeita  envolvimento de usos indevidos de emendas e outros ainda sob investigação da Policia Federal.

É fato que medidas que tenham por objetivo tornar o uso de emendas parlamentares, que são recursos públicos e não privados, mais transparentes e rastreáveis, terá como uma de suas consequências à indignação de quem não fez, não faz ou pretende fazer, o uso correto dessas emendas, e não por acaso os partidos e parlamentares da extrema direita e do Centrão já anunciaram o objetivo de “atrapalharem o governo” como represália por não poderem usar o orçamento como pretendem.

Trata-se de um grande desafio para o governo Lula nos dois anos que ainda restam de mandato. Um governo que não tem maioria no Congresso Nacional e com o poder e os achaques da direita, extrema direita e do Centrão (seus aliados) no Congresso Nacional põe em risco à própria governabilidade.

O STF toma uma decisão correta, tendo como objetivo a existência de critérios de publicidade, transparência e rastreamento de emendas parlamentares, impondo limites à “farra das emendas” sem controle e transparência e o governo não pode ficar refém de um Congresso que promete retaliar caso as emendas não sejam liberadas, conforme os critérios estabelecidos apenas por eles mesmos.

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