Trans-escrita

Esses dias terminei de ler um livro muito instigante, um ensaio sobre o processo da leitura e sobretudo da escrita feito por uma autora travesti argentina, a Camila Sosa Villada. Para quem não a conhece, indico seu romance “O parque das irmãs magníficas” e seu livro de contos “Sou uma tola por te querer” ambos editados e publicados pela Editora Planeta do Brasil, além, claro, do ensaio autobiográfico “A viagem inútil: Trans-escrita”, publicado pela Fósforo, texto do qual despertou minha vontade de escrever a crônica de hoje.

Logo nas primeiras páginas, Villada diz que “lendo na minha cama, o mundo é gentil. Encontro um refúgio.” Parei nessas frases e um filme da minha vida se estampou diante dos meus olhos. Quantas vezes os livros foram meu refúgio, foram meu chalé na floresta, minha casa da árvore, minha cabana armada no quarto trancado. Quantas vezes me protegi do mundo com folhas, páginas e mais páginas de livros. Elas e eles me protegiam e me protegeram de várias formas. (Até hoje!)

Muitas pessoas não se aproximavam de mim porque os livros as impediam. Eram meus escudos. E também minhas armas de defesa. Por estar sempre lendo, eu era a CDF, a nerd da turma, a “inteligente”. Não sabiam elas, as outras pessoas que me cercavam, que os livros eram muros de proteção e afastamento. Algumas vezes amuletos de aproximação e de sedução. E eles me salvavam das violências, das chacotas, e da solidão profunda (apesar de sempre ter tido facilidade em fazer amigos… amigas, sobretudo).

“[…] existe um poder no exercício da leitura”. E eu o experimentei muito cedo. Porém, discordando da autora, digo mais, existem poderes: o de se tornar invisível, o de não se sentir sozinha, o de se fazer ser lida como inteligente e, portanto, aceita em certos ciclos, o de desenvolver pensamento crítico, repertório e oratória e, assim, fazer-se persuasiva, decidida, firme… Ah, a linguagem e seus múltiplos poderes. Eu os experimentei, repito, das maneiras mais eficazes que pude: com eles, sobrevivi.

A leitura me deu vazão para a escrita muito cedo. E escrever – descobri isso mais tarde – era outro poder, é outro poder. Villada registrou em seu ensaio: “Escrevo… e assim, como se não fosse nada, salvo minha vida. Salvo minha tristeza. Invento um mundo só pra mim.” Sim, a leitura e a escrita me salvaram. Me fizeram feliz e me deu meu mundo. Com essas ferramentas, eu “Construí meu mundo de delícias” – título que dei para uma publicação minha de 2011.

Em um trecho dessa antiga crônica se diz: “Fiz meu mundo, apesar de…/ Adaptei-o a mim o quanto pude. Transformei-o em meu habitat e fui aceita em alguns lugares. Talvez pela sutileza ou naturalidade como o deixei me conhecer. / Hoje ele se encaixa em muitas das minhas necessidades. Sinto que ele necessita de mim, às vezes, e não raras. Tornei-me importante para ele. (É nisso que eu preciso crer.)

E posso crer porque é assim que o registro, e é assim que o leio, e foi assim que o fiz e o compreendo e, lendo e escrevendo esse mundo, me salvo. “A literatura às vezes faz profecias, busca encontros, estimula o desejo dos outros sobre mim mesma, celebra-se como ato de amor, e então é uma bênção ser escritora”, diz Villada em seu ensaio, e tomo para mim seu trecho. Talvez a leitura e a escrita tenham sido a sutileza e a naturalidade das quais falei na minha crônica de 2011. E isso foi uma bênção!

De muitas formas a leitura e a escrita me fizeram e me protegeram de “todo o preconceito… que existe em relação à travesti.” Pelo menos de boa parte dele. Deram-me abrigo, funcionaram como barreiras, fizeram-me uma promessa, uma profecia. Fizeram-me ver que “Uma filha travesti, escritora, um monstro desse tamanho, retorcido em si mesmo, prisioneiro do mundo, sempre propenso a cair em covas cada vez mais profundas, uma criatura lamuriosa, solitária, sempre pronta para se rebelar, até mesmo quando os ventos estão a seu favor” poderia se ressignificar no mundo e ser aceita, e ser respeitada, e ser amada.

Assim como a Villada, “Meu primeiro ato de travestismo foi pela escrita.” Nela eu já era Bia. “Escrever implica uma rebeldia…” e eu me rebelei através dela. Escrever me deu permissões: a de existir como eu queria, onde eu queria, com quem eu queria, mostrando todas as identidades com as quais eu poderia performar. Permitiu-me dizer ao mundo que estamos aqui, nós, mulheres Trans/Travestis, ocupando lugares diurnos e cotidianos, para além da noite e da sarjeta e do ostracismo (lugares e situações nos quais condicionaram nossa existência “natural”).

Escrever me permitiu acender um holofote sobre nossas existências humanamente iguais, mas socialmente distintas. Sobre nossos sofrimentos, nossas solidões, nossas válvulas de escape, nossos corpos fetichizados, nossos sonhos e desejos. Permitiu-me ser vista e amada, e, de alguma forma, experimentar a imortalidade, mesmo que, neste país haja uma sentença de morte aos 35 anos para nós, mulheres Trans/travestis.

Que a leitura e a escrita continuem salvando nossas vidas. Que a leitura e a escrita continuem sendo nossas armas e escudos de resistência e sobrevivência. Que a Literatura, sobretudo a Literatura, seja um ato de amor como dizia Borges, de amor por todos nós, por todas nós.

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