A LÍNGUA DOS ARCHOTES

Eduardo Bonzatto*, Pragmatismo Político

Vivemos em tempos medievais. Pelo menos de um medievo contemporâneo, anacrônico e voraz.
Os perseguidores que com suas achas caçam a diferença em todo canto parecem deter o monopólio da virtude, como já apontou outro autor.
São moralmente ilibados e fundaram a ordem eclesial dos defensores do bem.
E o lugar em que foram arrancar sua moral superior está representado por um rosto guia.
A palavra amor vibra em suas bocas adornadas por um esgar luminoso das achas do fogo purificador. Querem um mundo de amor. Como todos os antepassados, o bem, o amor carece sempre de alguma destruição.
A parte maldita deve ser eleita e criminalizada. E mesmo sem exterminá-la, a mancha de ignaros deve pousar sobre o grupo.
Aconteceu inúmeras vezes nas sociedades sacrificiais. Os racistas de Gobineau, os nazistas de Hitler, os fascistas espanhóis de Franco, os socialistas de Stalin, os alunos de Mao, os gays do Che.
Se a eliminação não se completou, os archotes iluminaram esses seres para o escárnio dos demais.
Hoje, aqui nesse país de futuro incerto, testemunho pessoas com archotes gritando slogans igualmente desumanos. Pessoas que se acham melhores, amparados em discursos que exumam dos demais sua humanidade e os condenam às penalidades usuais de exílio e encarceramento. Os archotes não permitem que vejam ali outros humanos.
E esses seres antiquados são artistas, professores universitários, com seus monopólios de virtude saindo pelas calças apertadinhas.
Já os admirei e dentre eles alguns foram meus amigos. Hoje me envergonho dessas atitudes e me afasto dessa gente como se tivessem lepra contagiosa.
Eu os admirava, há um tempo atrás. Partilhei de suas mesas e dialoguei com suas ideias. Hoje habitam a aridez da inteligência. Um deserto ocupa o lugar onde antes havia algumas ideias.
Me pergunto como é possível tamanha regressão?
Os lemas que levaram tantas pessoas íntegras à mais completa indignidade foram: Precisamos salvar a democracia! Precisamos salvar a verdade! Precisamos identificar os mentirosos e os golpistas!
E esses mantras dignos de imbecis serviram àqueles que outrora eu admirava, que dispararam nas redes as imagens de pessoas que protestaram contra seus líderes.
E num único movimento, adoraram esses líderes e os defenderam do perigo inexistente, incorporando discursos sem nenhum apelo à inteligência.
A inteligência saiu de férias e esses velhos amigos se regozijavam de sua ausência.
Me lembrei do experimento.
A terceira onda foi um experimento social para demonstrar que mesmo sociedades democráticas não estão imunes à atração pelo fascismo. Ele foi realizado pelo professor de história norte-americano Ron Jones com estudantes do segundo ano do ensino médio que frequentavam sua aula de história “Mundo Contemporâneo” como parte de um estudo sobre a Alemanha nazista.
O experimento aconteceu na Cubberley High School em Palo Alto, Califórnia, durante a primeira semana de abril de 1967. Jones, vendo-se incapaz de explicar aos seus estudantes como a população alemã poderia ter alegado não saber sobre o extermínio dos judeus, decidiu demonstrar isso a eles. Jones começou um movimento chamado “A Terceira Onda” e disse aos seus alunos que o movimento tinha o objetivo de eliminar a democracia. A ideia de que a democracia enfatiza a individualidade foi considerada uma desvantagem e Jones enfatizou esse ponto principal do movimento no seu lema: “Força através da disciplina, força através da comunidade, força através da ação, força através do orgulho.”

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O experimento não foi bem documentado na época. Em fontes contemporâneas, o experimento só foi mencionado no jornal estudantil da Cubberley High School, The Cubberley Catamount. Ele é mencionado brevemente em duas edições, e uma outra edição do jornal tem um artigo mais longo sobre este experimento e sua conclusão. O próprio Jones escreveu um relato detalhado do experimento nove anos depois e mais artigos sobre o experimento foram feitos, incluindo algumas entrevistas com Jones e os estudantes originais.
Parece que estamos vivenciando experimento social similar em larga escala.
Para salvar a democracia construiram narrativas esdrúxulas com efeitos muito próximos daquele feito pelo professor Jones.
Rapidamente, aqueles que se protegiam do fascismo se tornaram fascistas ferozes com seus archotes ansiosos para queimar seus semelhantes.
Isso só é possível porque a desumanidade expandiu seus efeitos sobre todos aqueles que se julgam superiores. A objetificação se tornou prática relacional ocupando vidas que também se objetificaram no processo.
O termo relação social traduz essa objetificação. A reificação é já um dado da vida de muitas pessoas incapazes de refletir sobre o outro, já que o outro é o inferno.
Acompanhar o desenrolar de A terceira onda é quase acompanhar como os discursos em defesa da democracia ocuparam a vida dos que se sentem superiores hoje em dia, daí que a universidade e os artistas rancorosos encamparam abruptamente os discursos. A certeza é o grande inimigo da humanidade.
Jones relata que começou o primeiro dia do experimento com coisas simples como postura correta na cadeira e questionamento intensivo dos alunos. Depois ele focou em aplicar disciplina rígida na sala de aula, se portando como uma figura autoritária e melhorando dramaticamente a eficiência da turma.
A sessão do primeiro dia foi encerrada com apenas algumas regras, com o objetivo de ser um experimento de apenas um dia. Alunos tinham que ficar sentados com atenção antes do segundo sino, tinham que levantar para perguntar ou responder perguntas e tinham que fazer isso com três palavras ou menos, e deveriam preceder cada fala com “Sr. Jones”.
No segundo dia, ele conseguiu unir sua turma de história em um grupo com um senso extremo de disciplina e comunidade. Jones baseou o nome do seu movimento, “A Terceira Onda”, no suposto fato de que a terceira em uma série de ondas é a mais forte, uma versão equivocada de uma tradição atual da navegação de que toda nona onda é a maior. Jones inventou uma saudação que lembrava a saudação nazista e ordenou que os membros da turma saudassem uns aos outros mesmo fora da sala. Todos obedeceram esta ordem.
O experimento tomou vida própria, com estudantes de toda a escola aderindo: no terceiro dia, a turma aumentou dos 30 estudantes iniciais para 43 estudantes. Todos os alunos apresentaram melhora drástica nas habilidades acadêmicas e grande motivação. Todos os estudantes ganhavam um cartão de membro, e cada um deles recebia uma função especial, como fazer um símbolo da Terceira Onda, impedir que não membros entrem na aula, entre outras. Jones instruiu os alunos em como iniciar novos membros, e no fim do dia o movimento tinha mais de 200 participantes. Jones ficou surpreso quando alguns alunos começaram a informá-lo quando outros membros do movimento não obedeciam as regras.
Na quinta-feira, o quarto dia do experimento, Jones decidiu terminar o movimento porque ele estava saindo do seu controle. Os alunos se envolveram cada vez mais no projeto e sua disciplina e lealdade ao projeto era impressionante. Ele anunciou aos participantes que este movimento era parte de um movimento nacional e que no próximo dia um candidato à presidência da Terceira Onda seria anunciado publicamente. Jones convocou os alunos para uma assembleia na sexta-feira para testemunhar o anúncio.
Ao invés de um discurso televisionado do seu líder, os estudantes viram um canal fora do ar. Depois de alguns minutos de espera, Jones anunciou que eles tinham sido parte de um experimento sobre fascismo e que todos criaram voluntariamente um senso de superioridade como os cidadãos alemães tinham no período da Alemanha nazista. Depois ele exibiu um filme sobre o regime nazista para concluir o experimento.
Por um processo especular e espetacular, os que se submeteram ao processo para salvar a democracia por aqui, identificam naqueles a quem os archotes iluminam como fascistas e essa inversão não permite que algum resquício da velha inteligência emerja para salvaguardar alguma humanidade. E gritam em público o mantra de sua superioridade SEM ANISTIA!

*Eduardo Bonzatto é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) escritor e compositor
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