Tragédia com 18 mortos em Canguaretama (RN) completa 20 anos

Com o pescoço dolorido, sentado todo torto no assento 20 do ônibus Guanabara 2414 que saiu de Brasília (DF) com destino a Natal (RN), vi no sábado (21), pela tela do celular, por volta das 5h30, a notícia da tragédia em Minas Gerais. Um ônibus saiu do terminal Tietê (SP), com destino a Vitória da Conquista (BA), e bateu de frente em um caminhão, na região rural de Teófilo Otoni (MG). Com saldo final de 41 pessoas mortas, a notícia foi divulgada como a maior tragédia da história numa rodovia brasileira, ultrapassando outro desastre, em 2011, na Bahia, onde 33 pessoas morreram.   

Segundo a polícia rodoviária federal, o motorista do ônibus invadiu a contramão após um dos pneus do veículo estourar. Ele colidiu com um caminhão carregado de pedras.

Segundo o painel de Acidentes Rodoviários da Confederação Nacional dos Transportes, 5.016 pessoas morreram de forma trágica numa rodovia federal do país em 2024. Ao todo, 69.422 mil pessoas se envolveram em algum acidente nas estradas brasileiras neste ano.

Há 20 anos eu não consigo olhar para tragédias como essa mais recente, em Minas Gerais, levando em conta apenas a frieza das estatísticas. Desastres do tipo me arremessam ao dia 19 de dezembro de 2004, duas décadas antes do acidente na rodovia mineira, em 21 de dezembro de 2024.

Estagiário no finado jornal Diário de Natal, acordei na manhã de 20 de dezembro de 2004, por volta das 6h, com o celular tocando ao lado da cama. No visor de vidro do telefone, o nome do então chefe de reportagem Dionísio Outeda. Direto e objetivo, deu a ordem:

– Vá agora para a redação do jornal. Houve um acidente em Canguaretama com um ônibus. Muitos mortos. Estou mobilizando a equipe toda”, disse e desligou.

Não lembro se fui um dos primeiros a chegar na redação, mas em pouco tempo a equipe quase toda, incluindo alguns repórteres e editores que só trabalhavam à tarde, apareceram. Naquela época, para grandes coberturas, os jornais mobilizavam grandes equipes.

O acidente ocorrera às margens da BR-101, na altura do município de Canguaretama. Um ônibus fretado por uma cooperativa de sacoleiros de Natal voltava de viagem com um grupo que foi comprar roupas em Caruaru (PE). Na altura do quilômetro 177, o veículo bateu de frente em um caminhão carregado de jerimum. Testemunhas informaram que o motorista do caminhão tentou fazer uma ultrapassagem irregular e provocou o acidente. Ao todo, 18 pessoas morreram, incluindo duas crianças (uma delas era filho do motorista), e 30 ficaram feridas.

Os jornalistas mais experientes foram deslocados para o local da tragédia, na região rural de Canguaretama. Outra equipe foi enviada para a entrada do hospital Monsenhor Walfredo Gurgel para acompanhar a chegada dos feridos e familiares. Um grupo ficou na redação levantando dados e ligando para os órgãos públicos em busca de repostas e das medidas a serem tomadas. Eu e um fotógrafo – acredito que tenha sido Carlos Santos – fomos encaminhados para o pior dos lugares naquele momento: a entrada do Instituto Técnico de Polícia (Itep), para onde eram levados os mortos e também o destino final dos parentes que já vinham arrasados do Walfredo Gurgel por não verem os nomes de seus entes na lista de feridos e, aos prantos, chegavam apenas para reconhecer e liberar os corpos.  

Se existe uma data e um lugar que simbolizam a tristeza para mim é o dia 21 de dezembro de 2004, em frente à entrada do Itep, na Ribeira.

Algumas cenas ainda estão vivas na minha mente. Como a de um jovem, de 20 e poucos anos, que entrou chorando na sala para reconhecer o corpo da mãe, saiu em surto e, do lado de fora, se ajoelhou na calçada e agradeceu ao “Deus filho da puta” pelo pior Natal que ele e a família teriam na vida.  

Ali na frente do Itep não existia número, estatística, dado, nada. A dor e o sofrimento tinham cara, corpo e voz. Faltando três dias para o Natal, pessoas comuns cheias de sonhos enterraram mães, pais, filhos, irmãos, amigos, a maioria das vítimas formada por trabalhadoras que viajaram para comprar mercadorias e fazer um dinheirinho para reforçar o orçamento de casa antes das festas de fim de ano.

Repórteres e fotógrafos se entreolhavam com os olhos vermelhos, cheios d´água, tentando forçar alguma normalidade em uma situação que de normal não tinha nada. Entrevistar os familiares das vítimas fatais ampliava uma dor coletiva que já atraía também a curiosidade de quem parou só para olhar.

Com o bloquinho e caneta na mão, eu ia catando palavras entre gritos de dor, choros compulsivos, discursos desconexos e homenagens a familiares.

Por volta do meio-dia, um colega me substituiu no local e voltei para a redação, onde chegavam arrasados e em silêncio os colegas que estavam no Walfredo e no local do acidente.

Entre as apurações finais e outra pauta que parou nas minhas mãos, terminei o expediente já no início da noite. Na saída do jornal, lembro de entrar no carro, pegar a namorada no trabalho e seguir para casa.

Passei o percurso da avenida Prudente de Moraes relatando tudo o que vi e senti naquela manhã. Isso até a altura do finado estádio Machadão (hoje Arena das Dunas), onde desabei num choro por longos minutos. Acho que foi um descarrego, a forma que encontrei de expelir, botar para fora, tanta energia ruim, a carga pesada daquela tragédia demasiadamente humana que, de tempos em tempos, se repete em algum quilômetro Brasil afora.

Exatos 20 anos separam a tragédia de Canguaretama e o maior desastre das rodovias brasileiras registado agora, em Minas Gerais.

Morreram naquela tragédia do Rio Grande do Norte as seguintes vítimas: Brenda Talia Lima, Maria das Neves da Cunha, Rafael dos Santos Monteiro, Iranildo Duarte Moreira, João Batista Duarte Moreira, Ana Cristina Farias, Joseane Sales Romeiro, Élio Almeida da Silva, Luís Martins de Souza, Francisca de Souza Gonçalves, Maria Eleni Lopes, Agtônio Gomes de Lemos, Anderson Ferreira de Lemos, Francisca Tetéu de Souza, Marisandra Tetéu de Souza, Rosângela Maria de Souza, Francisco José de Andrade e Sílvio Carvalho.

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