Opinião: “Que Natal teremos neste século 21?”

Jamil Chade:

“Vi, há uns dias, um vídeo do grande Luiz Antonio Simas contando como o compositor Assis Valente havia se irritado como a então transformação do papai Noel em um símbolo da Coca Cola. O músico, como resposta, compõe o que acabaria sendo um clássico das canções brasileiras para esta época do ano.
 
E conclui a letra com uma verdadeira destruição da mitologia:
 
Já faz tempo que eu pedi, mas o meu Papai Noel não vem
Com certeza já morreu ou então felicidade
É brinquedo que não tem.
Vivo hoje numa cidade que há dois meses promove esse Natal que deixou Valente profundamente irritado. Em Nova York, como em tantas cidades do mundo, é um desafio encontrar a figura de Jesus diante de uma abundância de luzes, trenós, caixas de presentes, o “bom Velhinho”, sinos e árvores.
Ao percorrer as cenas que todos já vimos em filmes, fica evidenciado que vivemos um Natal inventado a partir de uma sociedade onde o consumo é sinônimo de felicidade, de conquista e onde o sistema se mantém se cada cidadão – cristão ou não – aportar parte de seu salário para que a máquina capitalista continue a funcionar. No fundo, trata-se praticamente de uma antítese do Natal.
 
A reinvenção da tradição não se limita ao que Assis Valente constatou. Tudo nesta data é parte de uma construção.

 
Sou cristão. Mas não existem sequer provas de que Jesus tenha realmente nascido em 25 de dezembro. E não se sabe tampouco se isso ocorreu há 2024 anos. Nos Evangelhos, apenas dois deles tratam desse nascimento de Cristo. Para os primeiros cristãos, não era o nascimento do filho de Deus que funcionava como pilar da nova religião. Mas sua crucificação. Ou seja, a Páscoa.
 
Foi apenas 300 anos depois dessa suposta data que o imperador romano decide que faria sentido comemorar o Natal, numa manobra política para também promover o cristianismo ao qual ele acabara de converter. As festas, nesta época do ano, já existiam para os romanos. Mas tinham uma relação com a data do solstício e com a Saturnália – festival em honra ao deus Saturno e que ocorria entre 17 e 23 de dezembro.

 
Por séculos, a festa era também um momento de transgressão e uma oportunidade de inversão das relações sociais. Essa transgressão chegou a tal ponto que parte da sociedade passou a exigir uma reinvenção do Natal, com vozes como Benjamin Franklin pedindo celebrações mais moderadas.
Uma nova invenção do Natal ocorre com transformação econômica e social do século 18, acompanhada pela santidade da propriedade privada e uma burguesia que, para se diferenciar da aristocracia e dos trabalhadores, inventa suas tradições para colocar nas vitrines da sociedade seus valores. O piano chega ao centro da sala, num símbolo de status de ter tempo sobrando para praticar um instrumento – e portanto, de não ser um trabalhador.
 
É o momento também de uma nova noção da família como parte da identidade, inclusive por motivos de herança. O sagrado passa a ser esse núcleo social, carregando com ele a criação de um ritual de dar presentes para demonstrar um amor que nem sempre esteve presente. O Natal, portanto, se transforma numa data que comemora a família, e não apenas Jesus.

 
A tal da árvore é também outra invenção, assim como São Nicolas, cuja data original é 6 de dezembro. Foi um conto de 1823 que o coloca num trenó e transfere seu dia para a noite de 24 de dezembro. Até 1850, o dia 25 de dezembro sequer era um feriado em diversos países europeus ou nos EUA.
 
O que é comum em todas as eras é a necessidade que temos de acreditar num futuro melhor, na esperança como motor e de declarar quem somos. Ou desejamos ser.
Por isso, talvez tenha chegado o momento de redefinir o Natal. Não para substituir por uma outra festa e muito menos para atacar o cristianismo. Mas para justamente transforma-lo num esforço de reinvenção do futuro.
 
Ao longo da história, o Natal não foi apenas sobre Jesus. Mas sobre quem somos, sobre nossa identidade. Se desejar “Feliz Natal” é desejar amor, precisaremos então imaginar novos mundos e novas formas de viver em sociedade, como propõe a escritora Juliana Monteiro sempre de forma tão enfática.
A história nos mostra que cada era construiu seu Natal e que, de fato, herdamos apenas um modelo dessa celebração. Num mundo onde a injustiça é obscena e a crise climática é existencial, reinventar a nossa festa – e não nega-la – pode ser fundamental para uma insurreição das consciências.
 
Num protesto recente pelas ruas de Nova York, vi um rapaz vestido de Papai Noel avisando que o Natal seria cancelado. O motivo: o derretimento do Polo Norte. Uma inteligente inversão de toda a mitologia.
 
E se plantarmos árvores no lugar de cortá-las? E se substituirmos o consumo que literalmente nos asfixia por outra maneira de demonstrar amor, inclusive espiritual e religioso?
 
Ousemos. Feliz Natal a todos!”
 
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