Como é o Natal dos (in)visíveis na cidade com o nome da festa cristã

Há 15 anos pelo menos Pierre Silva, 47, não sabe o que é sentar-se à mesma para participar de uma ceia de Natal. Esse é o tempo que faz que ele vive nas ruas, dormindo nas calçadas sob as marquises de lojas, restaurantes e supermercados da Cidade Alta. Piauiense de nascimento, veio ainda criança com a família para Parnamirim, mas depois da morte do avô em 1997, os atritos o fizeram sair de casa para nunca mais voltar.

O Natal de Pierre, diferentemente do de milhares de famílias que se reuniram para celebrar a data, não teve mesa farta, troca de presentes nem fotos felizes postadas nas redes sociais. Essa, para ele, foi uma noite como outra qualquer, dormindo por aí sobre um papelão que faz de cama para esticar o corpo cansado, alheio ao espírito natalino e invisível para a maioria daqueles que preferem ignorar sua existência.

As narrativas bíblicas sobre as circunstâncias que envolveram o nascimento de Jesus, segundo a tradição cristã, guardam pouca proximidade com as representações natalinas dos tempos atuais. De acordo com os evangelhos de Mateus e Lucas, Jesus nasceu em uma estribaria, numa manjedoura e foi obrigado a fugir da sua terra natal para viver como um refugiado.

“Parece que Deus preparou as circunstâncias mais humilhantes possíveis para a sua entrada, como se fosse para evitar qualquer acusação de favoritismo”, escreveu o teólogo e escritor norte-americano Philip Yancey no livro “O Jesus que eu nunca conheci”.

“Os fatos do Natal, rimados nas canções natalinas, recitados pelas crianças em peças apresentadas nas igrejas, ilustrados nos cartões, tornaram-se tão conhecidos que fica fácil esquecer a mensagem por trás dos fatos”, escreve ele, para em seguida acrescentar que essa mensagem relevada pelas histórias do nascimento é a de um Jesus “humilde, oprimido e corajoso”.

Rejeição, humilhação e desprezo

Humilde, oprimido e corajoso são adjetivos que caberiam perfeitamente para descrever Pierre. Não que ele queira se comparar a Jesus, obviamente, mas, assim como aconteceu com o menino palestino naquela noite, ele também não tem onde dormir, o que vestir e nem o que comer. A sua história, desde que veio parar nas ruas, foi marcada pela rejeição, humilhação e desprezo.

Da mesma forma que o nascimento de Jesus teve mais testemunhas animais do que humanas, Pierre só tem a companhia de “Marcelo”, um vira-lata caramelo que o segue pelas ruas, como o “Cão das Lágrimas” que seguia a personagem da “Mulher do Médico” de “Ensaio Sobre a Cegueira” (1995), livro do escritor português José Saramago (1922-2010), ganhador do Nobel de Literatura.

Com o cachorro Marcelo, uma dupla quixotesca

Apesar da dureza da vida, da invisibilidade social e de não saber como será o amanhã, Pierre tem esperança no futuro. Diz, com os olhos marejados, que tem o sonho de sair da rua, ter um teto e, principalmente, recuperar a dignidade.

Conta que nunca usou drogas, só bebe “uns negocinhos” de vez em quando, porque ninguém é de ferro para aguentar a brutalidade do dia a dia sóbrio. Às vezes é preciso esquecer da realidade, ainda que no outro dia, como se fosse uma intrusa, ela bata à porta novamente.

O rosto de Pierre carrega as marcas dos anos nas ruas. Tudo que possui cabe numa mochila que ele leva para onde vai, sempre acompanhado do seu fiel escudeiro, o vira-lata caramelo Marcelo. Juntos, formam uma dupla quase quixotesca.

Os olhos dele marejaram de novo ao se lembrar do avô, José Vicente da Silva.

“Ele não me deixaria nessa situação se estivesse vivo”, diz, com a voz trêmula.

“Eu fiquei meio revoltado quando perdi ele e minha família me abandonou. Hoje, minha família é ela que me ajuda aqui”, conta, apontando para Anastácia, moradora do Passo da Pátria, mãe de três filhos, que faz parte do Movimento da População em Situação de Rua de Natal.

Ela sempre dá força, entendeu? Tem muitos que têm muito e tem poucos que ajudam”, entristeceu-se, referindo-se à falta de solidariedade da maioria da sociedade, para quem a população em situação de rua é um “estorvo”.

A empatia, na maioria das vezes, vem de gente humilde igual a Anastácia, que também já viveu em situação de rua durante a pandemia da Covid-19.

“Tem uns que dizem assim ‘vamos lá em casa [almoçar]’, entendeu? Já tem uns que chegam aqui com um saco de pão, um copo de suco. Hoje uma mulher me deu duas quentinhas, dividi com dois colegas meus”.

Pierre contou que já trabalhou, com carteira assinada e tudo, mas há muitos anos ficou desempregado e nunca mais conseguiu nada. A única renda que possui vem do Bolsa Família. Não fosse isso, a situação seria ainda pior. Dos R$ 600 que recebe mensalmente do governo federal, ele manda uma parte para ajudar a filha de 14 anos que mora em Parnamirim, com quem não tem quase nenhum contato.

“Quando eu tenho um trocadinho, mando depositar ou fazer um pix pra ela”, disse, revelando que a adolescente “já se juntou” com o namorado. “As meninas de hoje são assim, se juntam logo cedo”, teorizou.

A última vez que Pierre comeu um pedaço de chester, uma imitação do peru servido nas ceias natalinas, foi no Centro Pop de Natal, equipamento público mantido pela Secretaria Municipal de Trabalho e Assistência Social (Semtas), no bairro de Petrópolis, para atendimento da população em situação de rua.

O espaço funciona de segunda a sexta, das 8h às 17h, com café da manhã, banho e lavagem de roupa.

“A gente não pode ficar lá dentro, tem que ficar na rua, faça chuva ou faça sol. Eu já fui procurar vaga no albergue [noturno], mas lá tá tudo cheio, entendeu?”.

Ele não tem um lugar certo para dormir. Dependendo da noite, se abriga nas calçadas do comércio da Cidade Alta, mas às vezes desce para a Ribeira. Já teve as sandálias, a mochila e os documentos roubados. As poucas roupas que possui foram doadas.

Preconceito até na igreja

Pierre já se acostumou com a indiferença das pessoas, assim também como os olhares desconfiados de algumas delas. Disse que até quando vai à igreja, levado por um pastor evangélico, as pessoas escondem logo a bolsa ao vê-lo chegar. A criminalização, a estigmatização e o preconceito são outros desafios para quem vive em situação de rua.

Pierre lembrou do avô de novo ao falar sobre a época do Natal. Emocionou-se mais uma vez.

“Lembro muito dele, ele sempre me dava conselhos, dizia pra trabalhar, não mexer em nada de ninguém pra não ser preso. Quando ele ficou doente, quem tomou conta dele fui eu”, contou.

Mesmo vivendo há tanto tempo nas ruas, Pierre diz que ainda tem o objetivo de “vencer” na vida. “Passado é passado, é só ter força de vontade”, filosofou, afirmando que seu sonho é arranjar um emprego de novo para, quem sabe, um dia ter uma ceia digna no Natal.

A desse ano, segundo ele, seria no máximo “um cuscuzinho ou uma sopa”, dependendo das doações que conseguisse.

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