1984: Sobre Ficção e Realidade

Setenta e cinco anos nos separam da primeira publicação do romance distópico 1984 do inglês George Orwell, mas estamos há 40 anos do “futuro” em que a história do livro se desenrola. A proximidade entre o tempo ficcional e a nossa realidade contemporânea não é apenas uma efeméride curiosa. Orwell jamais imaginara que sua premunição se consumaria de forma tão plena e perfeita, e que ele se tornaria um reverenciado oráculo moderno.Usado como referência para construção do enredo do livro, o regime soviético não existe mais, o antecipado fim da história não aconteceu e a guerra fria foi substituída por um ambiente político complexo e confuso, onde as fronteiras ideológicas estão turvas nos mapas, nas instituições e na mente das pessoas. Os seres humanos, incomodados com essa complexidade e suas ambiguidades, escolheram como estratégia para compreensão e enfrentamento dessa nova realidade a construção de respostas simples, definitivas e frequentemente equivocadas, e como tática, a intransigência, a intolerância e a rejeição sistemática do contraditório.É nesse contexto que as previsões Orwellianas começam a tomar corpo. A tendência atual de disseminar meias verdades, de manipular os fatos e de reescrever a história com o intuito de favorecer uma narrativa, na Oceânia de 1984 é papel do Ministério da Verdade – “Quem controla o passado controla o futuro; quem controla o presente controla o passado”. Já a definição do que é verdadeiro ou falso, o que pode ou não ser dito, discutido ou questionado – outro hábito pernicioso da modernidade – é a vocação da temida polícia do pensamento.O Grande Irmão, que vigiava a todos através das “teletelas” – simultaneamente aparelhos de televisão e câmeras de vigilância – não se tornou apenas um reality show transmitido no mundo inteiro. Em metamorfose tecnológica, a vigilância de pessoas comuns não é mais governamental e nem feita através de televisores. O Big Brother se tornou o Big Tech. O mecanismo de controle e manipulação de opiniões se dá através dos famosos algoritmos, que coletam todas as nossas pegadas ao longo das nossas jornadas virtuais e as colocam à venda. A manipulação psicológica pela tortura é transformada em cooptação do pensamento através da exposição massiva e persistente a meias verdades, inverdades patentes ou pós-verdades.Não é sem razão que 1984 nunca deixou de frequentar a lista dos livros mais vendidos em todo o mundo. A cada geração, esse clássico ressurge mais contemporâneo, e seu alerta assustador sobre os perigos de qualquer forma de totalitarismo se torna mais contundente. No seu leito de morte, Orwell supostamente fez uma advertência sobre seu livro: “não deixe isso acontecer”. 1984 precisa ficar em 1984.Eduardo S. Darzé – cardiologista 
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