A catarse criadora de Jamile Borges

Fã apaixonada e intransigente do Esporte Clube Bahia, a professora, antropóloga e escritora Jamile Borges, diretora do Centro de Estudos Afro-orientais da Ufba, sentiu um certo contentamento nostálgico com os dois títulos conquistados pelo Botafogo no final deste ano: a Copa Libertadores da América e, uma semana depois, o Campeonato Brasileiro.O sucesso da Estrela Solitária, como é conhecido o alvinegro carioca, trouxe à tona lembranças da infância de Jamile, na década de 1970, com seu pai, um funcionário civil do Exército Brasileiro, ilustrando as conversas domésticas sobre futebol, no bairro da Liberdade, com narrativas sobre o talento de Garrincha, o Anjo das Pernas Tortas, ídolo histórico dos botafoguenses.Parte dessa atmosfera futebolística familiar foi transferida para Um luto memorável, primeira incursão ficcional da respeitada intelectual baiana, com 26 anos de vida acadêmica, que chega ao mercado no final de janeiro.Jamile não considera o seu primeiro romance uma obra autobiográfica, embora elementos da sua vida pessoal estejam presentes na trama. O protagonista do romance é um homem que após vinte anos retorna à sua cidade natal no sertão baiano para o funeral do seu pai, um homem inteligente e bem-humorado, que todavia foi ausente na relação com os filhos. No retorno, o protagonista revê família, amigos e a namorada da juventude. “É o reencontro com a sua cidade como metáfora do reencontro com a sua existência. E a memória dessa mãe, que havia morrido antes do pai”, explica a autora.Na vida real, a ordem do luto se alterou de forma dramática. Concebido durante a pandemia, quando o quadro de saúde da mãe da autora estava bem, o livro foi escrito ao longo deste ano, em paralelo ao adoecimento gradual e severo da sua genitora, que morreu no fim do último mês de agosto. “A escrita foi um processo catártico e houve uma sinergia estranha porque o livro foi aprovado pela editora praticamente na mesma semana em que minha mãe morreu”, relata a autora.O título da obra, Um luto memorável, é uma tentativa de reconciliação com o passado familiar da autora, através de suas memórias afetivas. “Sobretudo em relação à memória do meu pai, com quem tive contatos intermitentes. Minha mãe se separou dele quando eu era muito jovem e eu só voltei a ter contato com ele depois de adulta”, conta a autora, que a partir dos nove anos de idade conviveu com a mãe e com nove irmãos. “Eu tento fazer da dor um lugar de recuperação de memórias, para administrar esse momento, porque a morte de minha mãe é muito recente”, pontua a escritora.Assim como a autora do livro, o protagonista da história é do ramo da antropologia. “O luto é um fenômeno antropológico”, define a escritora, destacando que desde a pandemia a noção da morte ficou muito mais presente na sociedade. “Eu perdi amigos e colegas de trabalho. E este ano, além de minha mãe, houve a morte de mães de amigos muito próximos. O ano de 2024 foi de muito luto, mas também essa conquista de partilhar com a família, os amigos e a sociedade essa experiência de uma escrita catártica sobre um espaço que é da dor, mas pode se traduzir em memória”, afirma a autora, que cita a experiência do escritor espanhol Jorge Semprún, morto em 2011, que há 30 anos lançou A Escritura ou A Vida, sobre sua experiência em um campo de concentração, durante a Segunda Guerra Mundial, período que o fez iniciar-se na literatura.”Ele disse que precisava escrever para sobreviver, que não teria sobrevivido sem a escrita”, conta a intelectual que se interessou pelas ciências sociais durante as aulas de sociologia e filosofia que teve no ensino médio, no Colégio Estadual Duque de Caxias, na Liberdade.O pai de Jamile morreu em decorrência do Alzheimer e, no final da sua vida, seus filhos testavam o seu nível de lucidez perguntando se ele lembrava quantos filhos teve. “Ele era muito espirituoso e respondia que diversos”, conta a professora.A orelha do livro foi escrita pela professora Lícia Beltrão, da Faculdade de Educação da Ufba, que declara como se sentiu ao ler o romance. “A começar pelo coração, considero que a experiência com o livro foi impactante e marcada por muita emoção, já que passava a conhecer, com sua leitura, mais uma versão de Jamile Borges, aquela com que se iniciava no mundo literário, e o fazia muito bem”, declara Lícia, que define o livro como uma narrativa instigante sobre um tema exigente, mas precioso e que alarga a reflexão de quaisquer leitores sensíveis.”Acrescento às virtudes já aludidas, a arquitetura da escrita, criada por Jamile e que concorre para que apreciemos a natureza do romance”, acrescenta a professora.Lícia toma por base a acepção de Ramón Nieto, estudioso espanhol do século passado, autor de O ofício de escrever, para classificar Um luto memorável como um romance curto.Isso porque, a seu ver, o livro mantém as características estruturais e estéticas da escrita ficcional de um romance típico, como o desenvolvimento dos personagens, a trama articulada e um ambiente bem edificado. “O livro apresenta, contudo, uma extensão reduzida, o que somente é possível pelo manejo econômico, consciente e inteligente da palavra escrita”, avalia Lícia.Sobre Jamile, a professora da Faced declara que é uma pessoa singular, como indivíduo ou como acadêmica, não obstante a sua versatilidade. Entre as suas características, Lícia enumera o sorriso fácil, a escuta sensível e generosa, a admirável inteligência, e a capacidade de se situar e de transitar adequadamente em contextos diversos.”Jamile interage com sensibilidade e respeito, com diferentes gentes e sua prontidão para o debate profundo sobre temas, os mais diversos, sempre afinada com o que houver de mais contemporâneo, sem desprezar o que de substantivo colheu no passado, com a competência que sua formação leitora lhe vem outorgando. Uma pessoa, uma acadêmica, que merece reverência e aplausos”, define a professora da Faced.A ser publicado pela Editora Libertinagem, uma companhia paulistana especializada em autoras, Um luto memorável deve ser lançado na segunda quinzena de janeiro.
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