Habeas Corpus para cultivo de cannabis tem explosão de pedidos

O engenheiro florestal Rogério Souza, conhecido nas redes sociais como o ativista Bud Baiano (@budbaiano) tem Espondiloartrose Anquilosante desde adolescente e convive com a dor crônica causada pelo problema desde os 15 anos. Aos 38, ele é o primeiro baiano com essa doença a ter recebido autorização da Justiça para cultivar cannabis para o uso medicinal. Também é o primeiro de Salvador a ter um habeas corpus para o cultivo e a fabricação do óleo à base de canabidiol usado em seu tratamento e, ainda, é o primeiro homem negro a conseguir a vitória judicial em um país onde o racismo estrutural marginaliza derivados da maconha e usuários, com base na cor da pele.Rogério, ou Bud, conseguiu o habeas corpus em 2022, após três anos buscando seu direito de cultivar legalmente o próprio remédio. Em 2024, segundo dados enviados ao A TARDE pelo Supremo Tribunal de Justiça (STJ), até 14 de agosto já são 116 pedidos de HC em todo o país, um aumento de 68% em relação a 2023, quando ocorreram 69 solicitações. Comparando os últimos seis anos, de 2018 a 2024, o aumento é de espantosos 11.100%, saltando de 2 para 224 pedidos.Um pedido da Bahia, feito em 2023, tramita no STJ atualmente, conforme os dados enviados pelo órgão federal para a reportagem. O recordista em pedidos este ano é São Paulo, com 79 solicitações. A Bahia ainda não tem pedido registrado no STJ este ano, ainda de acordo com o levantamento do Supremo. Mas, por aqui, já foram concedidos pelo menos 50 Habeas Corpus, estima o médico e também ativista Leandro Stelitano (@leandro_stelitano), fundador e presidente da Cannab – Associação para Pesquisa e Desenvolvimento da Cannabis Medicinal no Brasil (@associacaocannab) e vice-presidente do Cepad – Conselho Estadual de Políticas Sobre Drogas da Bahia.Em todo o Brasil, o tratamento à base de canabinoides cresceu 130% em 2023 e a venda de produtos medicinais à base de cannabis nas farmácias brasileiras registrou um crescimento de 151% no primeiro trimestre de 2024, em comparação ao mesmo período do ano passado, segundo relatório da Associação Brasileira da Indústria de Canabinoides (BRCann). A entidade diz ainda que foram comercializadas 417,6 mil unidades do medicamento, movimentando R$163,7 milhões, no ano passado.O problema é que o preço do medicamento é muito alto ainda nas farmácias e foi justamente o valor exorbitante tanto no balcão das drogarias quanto para a importação do óleo de cannabis, que levou Rogério ao cultivo próprio e Sandra Najara Velame, 52 anos, profissional da área de educação, a desistir do tratamento que havia lhe dado paz com as dores causadas pela fibromialgia. Ela usou o óleo por um ano, mas teve de parar porque os preços nacionais eram proibitivos e a importação tornou-se incerta.Dor 24 horas por diaEspondiloartrose Anquilosante é uma inflamação autoimune que afeta os tecidos conjuntivos e as articulações da coluna vertebral e outras partes do corpo. O pai de Rogério Souza tem a doença também. O ativista baiano conta que até receber o diagnóstico, conviveu com as dores sem saber que havia herdado a doença. O problema dele afeta os micro ossos do sacro-ilíaco. Eu acompanhava meu pai ao médico e, em 2012, os médicos disseram que eu poderia ter o mesmo problema. Em 2017, eu tive uma crise muito forte e quase fiquei sem andar. Foi quando lembrei do que um amigo tinha me dito em 2014, sobre o uso medicinal da cannabis, e resolvi usar o óleo”, conta Bud Baiano.Ele ouviu falar pela primeira vez dos benefícios da planta quando morou fora do Brasil e, nadando, teve uma dor no ombro e esse mesmo amigo falou sobre o óleo e as pesquisas do canadense Rick Simpson, que usou o óleo para tratar um câncer. O método de extração e preparo da substância acabou herdando o nome dele.Após melhorar em 2017, Bud resolveu pesquisar o óleo com mais detalhamento e, em 2018, auxiliado pela advogada Natália Ferreira, da Rede Reforma, que reúne advogados antiproibicionistas, entrou na Justiça para legalizar o cultivo doméstico de onde extrai o seu medicamento.“Eu já tinha passado três meses fazendo tratamento com opioides e era horrível, porque havia uma série de efeitos colaterais muito fortes e a dor não melhorava em nada, só aumentava cada vez mais”, revela Bud, que ao passar a tratar sua doença com o óleo, fez o desmame dos opioides que causavam tanto efeitos colaterais. “Passei por 10 médicos diferentes até encontrar Giovani Moura, neurologista especialista no uso de cannabis. Ele me levou para a Fundação de Neurologia da Bahia. Minha consulta com ele levou mais de uma hora, ele apenas me escutando. Ele me pediu para contar toda a minha história desde a infância com relação a essa dor e juntos nós começamos a investigar meu quadro e testar os efeitos do óleo”, revela.‘Sensação estranha’Sandra Najara Velame acordou um dia se sentindo estranha. Ela já estava fazendo o tratamento com óleo de cannabis, que importava após obter a autorização da Agência Brasileira de Vigilância Sanitária (Anvisa). “Comentei em casa que estava me sentindo diferente, mas não entendia o que era. Até que fui pegar um objeto pesado e percebi que o que eu estava sentindo era meu corpo sem dor. Eu não estava mais acostumada a saber como era o meu corpo sem a dor”, conta.Sandra tem fibromialgia, síndrome que se manifesta com uma dor incessante em todo o corpo, acompanhada de fadiga crônica, alterações no sono, na memória e outros sintomas que alteram a qualidade de vida totalmente. Ela começou a sentir as dores em 2015, mas antes, havia sido uma adolescente ativa, nadadora e competidora de natação. “Comecei a sentir uma série de dores cada vez mais intensas por todo o corpo, o tempo todo”, diz.Após consultar vários médicos que receitavam analgésicos e anti-inflamatórios que faziam só o paliativo mas que não resolviam o problema e as dores continuarem cada vez mais fortes, ela descobriu a Clínica da Dor e iniciou um tratamento convencional. Lá, os médicos solicitaram vários exames até fechar o diagnóstico para a fibromialgia. Nessa mesma época, ela ouviu falar do canabidiol e viu um documentários sobre o tratamento para epilepsia com a substância. “Descobri que existia a possibilidade do tratamento para a fibromialgia ser feito com canabidiol e busquei uma médica que trabalhava com a prescrição do medicamento, mantendo o tratamento na Clínica da Dor e com o óleo”, acrescenta.Ela se tratou por cerca de um ano. “Eu gostaria muito de ter continuado porque vi melhoras significativas no controle das dores e consegui retomar a atividade física, fiquei mais estável. Foi o momento da minha vida a partir da descoberta da doença em que eu me senti melhor e mais ativa, que eu não tinha dores frequentes, cansaço, fadiga ou desânimo, que voltei a ter uma vida normal. fazer as atividades que eu gostava como ir à praia, patinar e praticar rapel”, conta.Alto custoO Brasil ainda tem muitos entraves para que o tratamento com cannabis se popularize. Em Salvador, no ano passado, a lei 9.663/2023), de autoria do vereador André Fraga (PV), foi aprovada na Câmara Municipal e sancionada pelo prefeito Bruno Reis (União Brasil). A lei institui a distribuição do óleo à base de canabidiol no Sistema Único de Saúde (SUS), nas unidades de saúde da prefeitura da capital. Aprovada em março de 2023, mais de um ano depois, ainda não é possível fazer a dispensação no SUS porque falta a regulamentação.O médico Leandro Stelitano faz parte do conselho criado para atuar na proposta de regulamentação da lei, mas até hoje só duas reuniões foram agendadas pela Secretaria Municipal de Saúde (SMS). A reportagem entrou em contato com a pasta para saber sobre a distribuição dos medicamentos após a aprovação da lei, mas não obteve resposta até o fechamento da edição. Na esfera estadual, a Secretaria da Saúde do Estado da Bahia (Sesab), respondeu, via assessoria de comunicação, que não há dispensação do medicamento nas unidades de saúde do SUS no estado.Leandro Stelitano cita que a cidade de São Paulo, que aprovou a lei depois de Salvador, já regulou. Mas, a lei de lá só prevê o tratamento de três tipos de patologias, quando a Anvisa tem uma lista de mais de 44 doenças que podem ser tratadas com a cannabis de uso medicinal.Para o médico, a questão no Brasil ainda é, basicamente, de maior conhecimento sobre os benefícios para a população e a necessidade de se desmistificar o uso do medicamento e reduzir o preconceito. “De cinco anos para cá tem evoluído muito por conta das pesquisas e da própria mídia abordando o tema dos tratamentos. Mas o principal entrave mesmo é a questão dos legisladores do país. É preciso de uma regulamentação federal, a gente precisa ter uma lei federal que permita o cultivo no país, porque a importação é muito cara e nas farmácias o óleo é ainda mais caro do que importar”, afirma. “A partir do momento que a legislação federal regule e autorize o cultivo, o preço vai ser mais justo e esse atendimento à população vai melhorar”, defende Stelitano.O médico diz ainda que é preciso lidar também com a desinformação e o preconceito entre os próprios médicos e que isso tem relação com falta de estudo sobre o tema. “Só 1% dos médicos brasileiros prescrevem tratamento com canabidiol, sendo que o Brasil tem mais de 700 mil médicos. Então, falta estudo. Na faculdade a gente não tem um estudo do sistema endocanabinoide, então é preciso buscar esse conhecimento em artigos científicos. Não é nenhum milagre ou panaceia, é ciência. Existem dados, existem publicações, mais de 25 mil artigos falando a respeito”, enfatiza.ConservadorismoO advogado Ladislau Porto, especialista em direito canábico e que atende mais de 10 associações brasileiras que militam pelo uso da cannabis medicinal, diz que o problema dos entraves para a liberação do cultivo e do uso do medicamento tem relação com o conservadorismo do Congresso Brasileiro. Segundo ele, o aumento nos pedidos de Habeas Corpus no STJ para o cultivo é resultado dos movimentos dessas entidades que pressionam por uma solução.“Essa movimentação no Brasil começou muito porque as pessoas tiveram acesso na internet às informações e passaram a importar por conta da necessidade de saúde, até que a Anvisa regulamentou, Mas o óleo importado de boa qualidade chega a custar R$1.500, R$3.000 um frasco. Por isso surgiu a demanda das pessoas pelo cultivo, para elas produzirem o próprio remédio. Tem pessoas que deixam de usar de cinco a sete medicamentos que precisavam para controlar a sua doença e passam a usar só o óleo”, diz o advogado.A advogada que cuidou do caso de Rogério Souza, Natália Ferreira, diz que já obteve ao menos 10 habeas corpus preventivo para pacientes com dor crônica, fibromialgia, depressão grave e ansiedade e TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade). “Já atendi também, casos de mães com crianças autistsa e com epilepsia”, acrescenta.Segundo Natália, de dois a quatro mil HC preventivos já foram concedidos pelo STJ, que tem ponto pacificado quanto à necessidade dos pacientes. Os dados da Bahia e do resto do país, no entanto, não tem como precisar com exatidão porque os casos correm em segredo de justiça até por questões de segurança para os pacientes.Ela explica que quando o paciente vai à Justiça pedir o HC, ele já cultiva a planta para extrair seu remédio e precisa legalizar o processo para não ser enquadrado no Código Penal, já que plantar maconha ainda é crime no país.“O habeas corpus preventivo para fins de cultivo de cannabis medicinal é um processo que começa com o paciente tendo uma doença onde ele já tentou outros tratamentos e não teve o efeito esperado ou o medicamento alopático que ele utilizava tinha efeitos colaterais devastadores. Então, geralmente, o médico prescreve a cannabis e explica a necessidade desse paciente. É preciso um laudo médico robusto”, acrescenta.A advogada acrescenta que os pacientes também estudam bastante sobre cannabis e é necessário que tenham curso de cultivo, manejo e extração do óleo. “Geralmente esses cursos são oferecidos pelas associações que congregam famílias de pacientes e médicos que pesquisam o uso medicinal da cannabis. Tem universidades também como a Unifesp que oferecem cursos qualificados, então é preciso que o paciente tenha essa qualificação para comprovar ao juiz que ele sabe manipular aquela planta para fazer a extração do óleo que ele vai utilizar como remédio”.
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