Voto facultativo ou obrigatório?

Uma matéria publicada no jornal Folha de S. Paulo, no dia 10 de agosto de 2024, analisa os dados de uma pesquisa realizada entre os dias 6 e 7 pelo Instituto Datafolha sobre as eleições para prefeito de São Paulo. Um dos resultados foi o de que  46% dos entrevistados afirmaram que não votariam se o voto fosse facultativo, mesmo considerando que 70%  dos entrevistados concordem –  total ou parcialmente – que  o resultado da eleição terá impacto direto em sua vida.

E revela também que há uma relação entre o engajamento político, renda e escolaridade. Enquanto 46% dizem que não votariam caso tivessem escolha, sobe para 58% entre os que ganham até dois salários mínimos ou só estudaram até o ensino fundamental e que a proporção dos que deixariam de votar é maior entre os evangélicos,  eleitores que se identificam com o centro e entre os que pretendem escolher o apresentador José Luiz Datena.

Outro dado importante é que 53% dos que votariam mesmo se não fosse obrigatório, estão entre os mais ricos, escolarizados e identificados com a centro-esquerda e a esquerda e que votarão em Guilherme Boulos (PSOL), que  dos candidatos é quem tem o maior índice de eleitores engajados.

Quanto à pergunta se concordam com a obrigatoriedade do voto, 52% disseram ser contra “índice maior entre os homens e os eleitores do ex-presidente Jair Bolsonaro enquanto 46% afirmaram serem a favor, com destaque para as mulheres, os jovens de 16 a 24 anos e os eleitores do presidente Lula”.

Considerando levantamento de anos anteriores do Datafolha, há poucas alterações. Em 2008, por exemplo, era praticamente o mesmo percentual: 53%, em maio de 2010, diminuiu  para 48% (o mesmo em  relação à permanência da obrigatoriedade), em 2015, os contrários a obrigatoriedade  aumentou para  66% e em dezembro de 2020, diminuiu para 56% (e 41% a favor). 

No levantamento recente, não houve alteração substancial em termos de renda e escolaridade “têm menos vontade de votar os mais pobres e os menos escolarizados, além dos que estão insatisfeitos com as atuais gestões municipal, estadual e federal”.

Embora uma parcela significativa da população tenha, ao longo do tempo, se posicionado contrário ao voto obrigatório, ele tem se mantido. Foi  instituído  em 1932 (Código Eleitoral) e transformado em Norma Constitucional com a promulgação da Constituição de 1934.

Seus defensores argumentavam  na época que o objetivo principal era o de ampliar a participação nos processos eleitorais, considerando que até 1930 não chegava a 3% o número de eleitores (eram excluídos os analfabetos – grande parte da população adulta- e as mulheres).

Além de poucos votantes, a fraude eleitoral era uma constante, o que tornavam às eleições ilegítimas.

Nas Constituições seguintes, de 1946 e 1988, foi mantida à obrigatoriedade do voto. E com a extensão do direito de voto às mulheres (1934) e dos analfabetos (1988), houve uma ampliação da participação eleitoral.

Mas, se é inegável que houve um crescimento da participação, também é verdade que mesmo com o voto obrigatório, tem havido um grande número de abstenções, votos em brancos e nulos. Em 1955, para citar apenas um exemplo, nas eleições presidenciais as abstenções, votos nulos e em brancos foi maior do que os votos dados ao candidato eleito, Juscelino Kubitschek.

Com a ditadura civil-militar entre 1964 e 1985, as eleições presidenciais deixaram de ser diretas, com a sucessão de generais como presidentes da República (de Castelo Branco à João Figueiredo). Com a redemocratização a partir de l985, as abstenções, votos em brancos e nulos, continuaram, tanto na eleição presidencial de 1989, a primeira eleição direta para presidente pós-ditadura, como nas subsequentes. Em 1998, a exemplo do que ocorreu em 1955, foi maior do que os votos dados a Fernando Henrique Cardoso (reeleito no 1º turno) e também em relação a vários governadores, inclusive  também reeleitos em 1º turno (como Garibaldi Alves Filho no Rio Grande do Norte).

E não apenas em eleições presidenciais, mas também nas legislativas, tanto para vereadores, como para deputados estaduais e federais.  Isso significa afirmar que mesmo com o voto obrigatório as abstenções, os votos nulos e em brancos continuaram.

Para citar apenas as duas eleições mais recentes, as municipais em 2020 e a de 2022: Em 2020 a soma das abstenções, nulos e brancos superou a votação dos prefeitos eleitos em 486 cidades, incluindo 18 capitais, entre elas São Paulo (a soma das abstenções, votos nulos e em brancos foi 3, 6 milhões e o  prefeito eleito teve 1,7 milhões de votos). No estado de São Paulo foram maiores em 180 cidades). Em Natal, João Pessoa, Porto Velho, Palmas, Curitiba, Rio de Janeiro, Porto Alegre e Goiânia superaram a votações dos primeiros e segundos colocados juntos.

Em 2022, na eleição de outubro, do total de 156.454.011 eleitores aptos a votar, 124.252.796 compareceram às urnas. A abstenção foi de 32.200.558 (20,59%), nulos 3.930.765 (3,16%) e brancos 1.769.678 (1,43%).

Em termos percentuais, somados tem-se 25,18% (um quarto do eleitorado) e em termos numéricos 37.901.001, ou seja, quase 38 milhões de eleitores aptos que se abstiveram, votaram em branco ou anularam o voto.

O que se pode constatar é que esses índices são muito altos considerando que o voto é obrigatório. Caso não fosse, certamente esses números seriam maiores, como tem revelado as pesquisas eleitorais.

Por que o voto obrigatório se mantém? Quais são os argumentos em favor de sua manutenção?  Um dos argumentos é de que possibilita maior participação eleitoral.  Um dos mais importantes defensores do voto obrigatório foi um dos mais importantes sociólogos do país, Florestan Fernandes (ele mesmo eleito a deputado federal em 1986 e reeleito em 1990 pelo PT/SP). Para ele, o voto obrigatório se constitui num “expediente pedagógico para politizar massas imensas, que não tem acesso à educação, à cultura e ao exercício dos direitos políticos na sociedade civil. Representa literalmente uma tentativa de difusão gradual da democracia de participação ampliada”.

Vejamos. Primeiro, será mesmo que os processos eleitorais como temos visto hoje, com o predomínio do marketing, a expansão das redes sociais e seus usos (e abusos) eleitorais, da profusão de fake news e manipulações  leva a politização das “imensas massas” com alude Florestan Fernandes, ou seu oposto, a despolitização?

Segundo, o voto obrigatório é mais democrático? Mas como estabelecer uma relação entre voto obrigatório e democracia se a maioria das democracias representativas no mundo o voto é facultativo?  (na Europa, por exemplo, apenas Grécia, Liechtenstein, Austrália, Luxemburgo e Bélgica mantém o voto obrigatório). Na França apenas para o Senado e na Suíça  só no Cantão de Schaffhausen.  Na Oceania, Austrália, Nauru e Samoa. Na África, República Democrática do Congo, Gabão e Egito.

Em um levantamento feito pela entidade “Movimento voto livre, facultativo e consciente”, o voto é facultativo em 205 países e obrigatório em apenas 24. Na América do Sul o voto é obrigatório no Brasil, Argentina Bolívia, Uruguai, Paraguai, Equador e Peru. Na América do Norte, no México. Na América Central, na Costa Rica, Honduras e Panamá.

O debate sobre se o voto deve ser obrigatório ou facultativo é complexo. Quando se trata de entidades como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a Associação Brasileira de Imprensa (ABI), por exemplo, compostas por milhares de associados, embora suas respectivas direções possam ser posicionar a favor do voto facultativo, como já ocorreu, muitos dos seus associados discordam, da mesma forma  no Congresso Nacional. Há diversos projetos de Emenda Constitucional instituindo o voto facultativo e consta em vários relatórios de reforma política que tramitaram no Congresso, por iniciativa do Senado ou da Câmara dos Deputados, mas que não foram sequer votados.

O voto facultativo deve ser um direito, e não uma obrigação. Se as pessoas não acreditam  nos partidos (e muito menos nos políticos que os representam) por que ser obrigado a votar? Não se assegura legitimidade com a obrigatoriedade. Deve ser assegurado ao cidadão o direito de não comparecer às urnas, se não quiser. Cabe aos partidos, seus dirigentes e candidatos  motivarem os eleitores e assim o comparecimento às urnas deve se dar de forma consciente e não por obrigação.

Isso não significa que o voto não tem importância. No momento em que se aproximam às eleições municipais de outubro de 2024, creio ser relevante salientar a importância do voto. Nas democracias representativas é uma condição fundamental e necessária de participação política. Ao longo da história do Brasil sempre houve grandes limitações ao direito do voto.

Mas permanece o aspecto relevante de que parcela significativa da população, por variadas razões, não acredita nos políticos, nos parlamentos e assim se o voto não fosse obrigatório, não votariam. Embora isso seja compreensível,  votar é importante porque são eleitos os que detêm o poder nos municípios, estados e no País e a única forma de mudar isso (a não ser através de uma revolução) é através do voto, melhorando a qualidade da representação, fortalecendo os partidos políticos e não meras legendas de aluguel, que  contribuem para a desmoralização do parlamento, elegendo oportunistas e vigaristas de variadas espécies.

E mesmo defendendo que o voto seja facultativo e compreender os argumentos de quem defende a obrigatoriedade do voto, não me parece que isso seja incompatível com a defesa da importância do voto como uma das formas (não única) de participação política,  fundamental em uma democracia e que deve ser  (sempre) defendida , mas também deve ser dado o direito aos que não querem, por variados motivos, participar do processo eleitoral.

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