A vida como ela não é

Nesse terreno pantanoso chamado redes sociais continuo observando com preocupação os excessos das ferramentas de IA – Inteligência Artificial. Uma tecnologia que até serve para ajudar em diversas funções e que, inevitável, já faz parte do cotidiano, mas que também serve para falsear a realidade, colocando mais um capítulo no que chamamos de “pós-verdade”.

Escrevo isso porque parte considerável dos internautas, em algum momento (às vezes diariamente) publicam fatos e imagens que simplesmente não correspondem à realidade ou se trata de uma realidade/verdade falseada. Brincando com um amigo dia desses, evocamos o gênio Nelson Rodrigues, que escreveu suas histórias de “A vida como ela é”, para comparar com o pessoal de hoje que de diversas maneiras celebra e insiste na vida como ela não é.

Senão vejamos, nos aspectos mais banais, continuo chocado com a quantidade de amigas e amigos que usam de maneira exagerada (eu diria até obsessiva) os jogos de IA para “criar” versões novas delas mesmo. Sempre mais jovens, claro, mais glamurosas e em situações diversas: como vaqueiro, astronauta, turista, renascentista, motoqueira etc. Uma infinidade de possibilidades para a pessoa ser o que quiser (sem o ser de fato), para postar imagens mundo afora (sem sair de casa) e de ser mais jovem (sem qualquer procedimento estético ou modo de vida mais saudável).

Por falar em saudável, esse tipo de uso exagerado da ferramenta de “se tornar outra pessoa” não me parece ser nada saudável. Dia desses uma amiga postou uma “foto” dela em IA, vinte anos mais jovem e bela, em pose de Mona Lisa. Nos comentários, uma amiga escreveu: “Está linda, amiga”. Como assim? Aquela imagem não é ela! Seria o equivalente a um amigo chargista fazer uma caricatura minha muito magro e após eu publicar alguém comentar: “Está com ótimo corpo, Cefas”. Mas aquele é apenas um desenho, não seria eu. Acho assustador as pessoas comentarem imagens de IA como se verdadeiras fossem. E paradoxal já que o argumento é que “é só uma brincadeira inofensiva”.

Essa alteração (ou deformação) da realidade em postagens “inofensivas” de redes sociais chegou ao ponto de muita gente postar imagens aleatórias de coisas que vistas a uma certa distância se tornaram imagens como a de Cristiano Ronaldo, Gandhi ou John Lennon. Uma delas particularmente me chocou: a de crianças negras espalhadas em uma relva na qual olhando mais afastados se transformavam no rosto de Jesus Cristo. O bizarro era que ao olharmos com atenção as crianças, algumas tinham uma só perna, outras sem braços, algumas com os membros em curvas impossíveis, já que a imagem não era real, apenas uma simulação de IA para “formar” o rosto de Cristo a partir de uma junção de crianças, sem qualquer “inteligência natural” que fizesse as crianças serem dispostas de maneira “real”.

Mas pior que a imagem horrorosa foi ver muita gente comentando “Amén” ou “Jesus seja louvado” nas publicações dessa imagem. Como pessoas adultas poderiam achar que aquela imagem bizarra era real?

O que permite ainda uma análise geracional. Quando a inclusão digital e depois a IA ganham espaço quase onipresente, a preocupação era sempre com “os jovens”, com “as novas gerações”, supostamente mais influenciáveis e passíveis de más influências,digamos. Nada disso. Quem acredita em absolutamente tudo que é postado nas redes sociais (e nos grupos de zap) são justamente os cinquentões e sessentões. Não por acaso o Facebook, onde mais se compartilha imagens fakes, se tornou para os jovens espaço quase exclusivo de “coroas”. Millenials e geração Z praticamente não recorrer ao Facebook, preferindo Instagram e Tik Tok, onde as simulações de realidade parecem mais “explícitas” e “honestas”, não tentando se passar pela verdade e sim amplificá-la, como em um filme de Fellini.

Como escritor e jornalista aprecio a realidade, doa a quem dor e seja ela como for. Acho mais possível mudar a realidade (seja a coletiva ou a pessoal) com a consciência do que é real. Se eu, Cefas, me sinto acima do peso, não é com uma foto de IA de um “eu magro” que vai resolver o problema, e sim eu me pesando em uma balança e começando uma reeducação alimentar. A não ser que a ideia não seja “resolver” os problemas e sim reinventar a realidade, como em distopias tipo “Admirável mundo novo” ou “Fahrenheit 451”. Mais preocupante ainda.

E por falar em Jesus, citado mais acima, propositalmente peguei para ilustrar esse texto uma imagem (bizarra e brega, em minha opinião) de Cristo tirando uma selfie com os apóstolos. Postada com frequência por cristãos, não por ateus ou blasfemadores, diga-se. Que não se importam se a imagem em absolutamente nada evoca a época, roupas e costumes de Jesus e seus discípulos na áspera Judéia dominada pelos romanos. A imagem mostra a vida de Jesus como ela não foi. Uma realidade histórica distorcida e mal reinventada. Mas o que importa é que dá para postar, curtir e deixar um amém.

The post A vida como ela não é appeared first on Saiba Mais.

Adicionar aos favoritos o Link permanente.