Café, Pépi e Limão: filme baiano reescreve os Capitães da Areia com afeto

Capitães do Asfalto’, assim foi apelidado o filme Café, Pépi e Limão em entrevista que dei a Rafael Carvalho ao Caderno 2 do jornal A TARDE (matéria publicada em 13 de abril último). E eu queria aproveitar esse momento pra conversar com vocês sobre essas duas obras que se cruzam — uma literária (que já foi filmada por Cecília Amado em 2011), a outra apenas cinematográfica.Uma escrita em 1937, a outra filmada agora, quase 90 anos depois. Mas ambas nascidas da mesma cidade e do mesmo país que insiste em esquecer suas crianças.Eu falo com muito respeito, e com uma admiração imensa, da obra de Jorge Amado. É impossível pensar Salvador e não atravessar a sua literatura. E é impossível contar a história de Café, Pépi e Limão sem reconhecer que, de algum modo, ela dialoga com os ecos deixados por Capitães da Areia.Jorge escreveu sobre um grupo de meninos de rua — os capitães — que assaltavam, brigavam, sonhavam e reinventavam a cidade à sua maneira. E mesmo no abandono, havia beleza. Havia uma cidade mágica, contraditória, mas viva.No meu filme, eu parto da mesma Salvador… mas ela parece ter perdido o fôlego.Hoje, Pedro Bala talvez não tivesse nem tempo de sonhar com revolução. Talvez estivesse lavando para-brisa pra comprar pão. Talvez estivesse dormindo embaixo do viaduto, com medo de ser morto.Em Café, Pépi e Limão, a infância não é romanceada. Ela é cortada. Marcada. Rasgada. E ainda assim resiste.Ouvir para mudarCafé é o menino que transforma o semáforo em palco de sobrevivência. Limão carrega nas costas a dor de um adulto. E Pépi – nossa Pépi – é uma Dora contemporânea que não espera ser salva. Ela luta calada, e quando sorri, a gente sente vergonha do mundo que a feriu.A rua, que em Capitães da Areia era escola da vida, aqui virou campo minado. O trapiche virou viaduto. O mar virou fumaça. A poesia cedeu espaço pro realismo brutal, mas o afeto continua ali — como última trincheira.As duas obras falam da mesma cidade: Salvador. Mas são cidades diferentes. A de Jorge ainda respirava. A nossa hoje sufoca.Porque, apesar de tudo, o que ainda salva esses personagens é o laço que criam entre si. O carinho, a brincadeira, o nome inventado, o pedaço de pão dividido entre uma moeda no semáforo e um gole de café fraco ao amanhecer. É isso que os sustenta. E é isso que me interessa contar.Jorge sonhava um país que libertasse suas crianças. Eu filmei um país que continua condenando as mesmas infâncias de ontem. Mas ainda assim, elas seguem. Vivem. Brilham no escuro.Café, Pépi e Limão não quer chocar. Quer fazer ver. Quer abrir espaço onde só havia ruído. Quer ser escuta onde só havia silêncio.Convido vocês – com o coração aberto – a assistirem esse filme nas salas de arte da nossa cidade. Não porque ele é meu. Mas porque ele é urgente. Porque ele é feito das vozes que quase nunca chegam até aqui.E porque, quem sabe, se a gente começar a ouvir… a gente também comece a mudar.‘Pépi, Café e Limão’, de Pedro Léo Martins e Adler Kibe Paz segue em cartaz na Saladearte CineMAM
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