Enquanto o mundo vive a expectativa do conclave que escolherá o novo sumo pontífice da Igreja Católica, um padre, um pastor e um muçulmano falam sobre como o papa Francisco rompeu fronteiras religiosas para se tornar um símbolo da luta por igualdade, justiça social e distribuição de renda. Os três são lideranças em seus segmentos em Natal, vivem diferentes práticas de fé e possuem visões distintas de mundo, mas concordam sobre a importância do legado de Jorge Bergoglio, o argentino que se tornou o primeiro sul-americano da história a ser eleito como líder da Santa Sé.
Para o monsenhor Robério Camilo, pároco da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição, no bairro de Mãe Luíza, o maior legado do papa “vem expresso muito nas suas atitudes, nos seus gestos e no que ele escreveu nos seus documentos”.
Ele recorda que, ao ser proclamado papa, há 12 anos, Francisco pediu humildemente ao povo que se reunião na Praça de São Pedro, na Cidade do Vaticano, que “rezem por mim”.

Monsenhor Robério também lembra que a escolha do nome de Francisco foi motivada por um pedido do cardeal brasileiro Dom Cláudio Hummes, que após a eleição do papa cochichou no ouvido de Jorge Bergoglio: “Não esqueça dos pobres”.
“A escolha do nome, homenageando São Francisco de Assis, foi uma sinalização de que o papa era um apaixonado pelos pobres e pela pobreza”, declara monsenhor Robério.
Desde o início do seu pontificado, Francisco se notabilizou por colocar os pobres no centro da igreja. Em maio de 2021, durante a pandemia da covid-19, ao discursar em um encontro com uma delegação da Fraternidade Política da Comunidade Chemin Neuf da França, ele defendeu “uma Igreja pobre com e para os pobres, (…) próxima das pessoas em situações de sofrimento, precariedade, marginalização e exclusão”.
Não há paz sem justiça social, afirma pastor

O pastor da Igreja de Deus em Cristo Jesus de Felipe Camarão, na zona Oeste de Natal, José Silvestre, citando o texto bíblico de Isaías 32:17, disse que “o fruto da justiça será a paz”.
“O papa, além da paz, lutava pela justiça, porque não há paz sem justiça social. Uma sociedade onde as pessoas são desrespeitadas, têm seus direitos negados e não vivem com dignidade será um lugar de conflitos, guerras e violência”, comentou.
Antes de se tornar evangélico, há 25 anos, José Silvestre participou da Pastoral da Juventude, onde contou que teve contato com e teologia da libertação, o movimento que surgiu na Igreja Católica, especialmente na América Latina, na década de 1960.
Desde o seu surgimento, a teologia da libertação fez uma opção pelos pobres, colocando os oprimidos como centro da análise teológica e da ação social. No Brasil, o movimento teve entre seus expoentes nomes como Leonardo Boff, Frei Betto e Dom Hélder Câmara.
Durante o pontificado de João Paulo II, a teologia da libertação sofreu fortes restrições, com a perseguição de teólogos ligados ao movimento, em razão da sua aproximação com o marxismo.
A situação começou a mudar com a ascensão do papa Francisco, que demonstrou simpatia pelo movimento, acolheu teólogos que haviam sido perseguidos e abriu espaço para a reabilitação da teologia da libertação pela Igreja Católica.
“Havia uma discussão muito forte na teologia da libertação sobre a opção preferencial pelos pobres. Muita gente confunde isso com comunismo, mas não é nada disso. É justiça social. O Evangelho é justiça social, não aceita desigualdade”, observou o pastor.
Para exemplificar sua visão, o pastor citou a passagem em que Jesus manda o jovem rico ajudar aos pobres, descrito nos evangelhos de Mateus (19:16-22), Marcos (10:17-31) e Lucas (18:18-30).
“O jovem rico recusou, porque ajudar aos pobres era um ofensa. Quando Jesus fala isso, Ele estava falando de redistribuição de renda. O cristianismo surgiu das primeiras comunidades que repartiam o pão de casa em casa, cuidavam dos doentes. Naquela época, nem os médicos cuidavam dos doentes contagiosos. A igreja surgiu servindo àqueles que estão à margem da sociedade”, ensinou o pastor.
Crítica ao capitalismo selvagem
Francisco se destacou por seu posicionamento firme contra o que chamou de “capitalismo selvagem” – um sistema que, segundo ele, coloca o lucro acima da dignidade humana. Em diversas encíclicas e discursos, o papa alertou para os perigos da desigualdade crescente, da exploração do trabalho e da concentração de riqueza nas mãos de poucos.
“Um capitalismo selvagem ensinou a lógica do lucro a qualquer custo, de dar algo a fim de receber, da exploração sem pensar nas pessoas”, disse o pontífice, em maio de 2013, ao visitar uma cozinha comunitária no Vaticano.
Ao contrário do que sugeriam seus críticos, Francisco não defendeu nenhuma revolução socialista, mas sim um modelo de capitalismo mais “humano” e “inclusivo”.
“Um sistema econômico sem preocupações éticas não conduz a uma ordem social mais justa, mas leva, ao invés, a uma cultura descartável dos consumos”, afirmou.
“O aumento dos níveis de pobreza em escala global testemunha que a desigualdade prevalece sobre a integração harmoniosa de pessoas e nações, acrescentou o papa.
Francisco defendeu “terra, teto e trabalho” para todos
Monsenhor Robério Camilo destacou que, durante um encontro mundial com movimentos populares, em outubro de 2014, Francisco defendeu “terra, teto e trabalho” para todos.
“É estranho, mas, para alguns, o papa era comunista por causa disso. Não se compreende que o amor pelos pobres está no centro do Evangelho. Terra, teto e trabalho são direitos sagrados”, ponderou o pároco.
Ele lembrou que o próprio Jesus foi tachado de “subversivo” e “blasfemador” por pregar a justiça, a paz e a igualdade entre os povos. Para o monsenhor, assim como fez Cristo, Francisco “teve a coragem de assumir o seu lado em favor dos pobres”.
Aproximar crenças

O membro do Centro Islâmico de Natal, Muhammad Tawfik, ressaltou que, além de defender os pobres, Francisco também desempenhou um papel central na “aproximação de várias crenças”.
“Eu acho que ele foi o primeiro papa que reconheceu a religião islâmica. O papel dele foi muito importante, porque ele veio depois de Bento XVI, que eram muito conservador e fez declarações polêmicas sobre o Islã. Depois veio o papa Francisco, que aproximou todas essas crenças”, comentou.
Tawfik ressaltou que Francisco era “um dos mais defensores do povo da Faixa de Gaza”. “Quando ele defendia, não defendia só os cristãos, defendia também o povo palestino. Ninguém nega que ele foi o único religioso no mundo que defendia a paz para o povo palestino”, pontuou.
Francisco ligava diariamente para o pároco da Igreja da Sagrada Família, a única igreja católica em Gaza. As ligações aconteciam, geralmente, às 19h. O papa queria saber como estavam os cerca de 600 cristãos que se abrigavam estavam no templo.
Desde o início da guerra de Israel na Faixa de Gaza, Francisco condenou o massacre contra o povo palestino. Em 2024, o papa sugeriu que a comunidade internacional deveria estudar se os ataques do governo de extrema-direita israelense constituiria um genocídio.
“Devemos investigar cuidadosamente para avaliar se isso se encaixa na definição técnica [de genocídio] formulada por juristas e organizações internacionais”, declarou o papa ao diário italiano La Stampa.
Risco de retrocesso
A proximidade do conclave, além da expectativa da escolha do novo sumo pontífice, traz consigo também uma preocupação: o risco de um retrocesso nas reformas iniciadas pelo papa Francisco na Igreja Católica.
Francisco nomeou 108 dos 135 cardeais eleitores que escolherão o seu sucessor, mas isso, segundo especialistas em Vaticano, não significa que o próximo papa será necessariamente alguém de perfil progressista.
O monsenhor Robério Camilo destacou que Francisco “teve a coragem de ouvir inclusive as vítimas que foram abusadas pelo clero ao longo da história, assumindo uma postura de tolerância zero com isso dentro da igreja”.

Em abril de 2014, em discurso durante uma audiência da Oficina Internacional Católica da Infância, Francisco pediu perdão pelos abusos de crianças cometidos pelos padres, sinalizando que, pela primeira vez na história, a igreja não minimizava nem abafava os casos de pedofilia.
“Sinto-me impelido a responsabilizar-me por todo o mal que alguns padres – muitos, muitos em número, embora não em proporção à totalidade [dos abusadores] – e a pedir perdão pelo dano que causaram com seus abusos sexuais de crianças. A Igreja é consciente deste dano. É um dano moral e pessoal cometido por eles, mas como homens da Igreja. Nós não queremos dar um passo atrás no tratamento deste problema e nas multas que devem ser aplicadas. Em vez disso, acho que devemos ser muito duros. Não se brinca com as crianças”, discursou o papa.
Já sobre o tratamento da igreja com a população LGBTQIA+, o papa manifestou uma postura mais acolhedora, ao mesmo tempo em que reiterou os princípios tradicionais da Igreja Católica.
Em geral, ele se manifestou contra a criminalização da homossexualidade, afirmando que as leis que vão nesse sentido são injustas e deveriam ser abolidas, mas preservou os dogmas da igreja em relação aos homossexuais, como a proibição de bênção a casais homoafetivos.
Em que pese essa complexidade, o simples fato de o papa dizer que “a igreja está aberta a todos, inclusive aos homossexuais” já foi considerado um avanço.
Para o monsenhor Robério, “o risco de retrocesso é muito ruim”, porque, na visão dele, “é para frente que se deve andar”.
“O papa colocou a igreja, o barco da igreja, num rumo certo, num rumo para acolher a todos. Ele disse que na igreja tem lugar para todos”, refletiu.
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