“A igreja manda orar”: pesquisadora critica silêncio religioso diante da violência doméstica

Em 2024, 46 mulheres morreram em razão do gênero na Bahia, de acordo com a Rede de Observatórios de Segurança. O boletim Elas Vivem: um caminho de luta, divulgado no mês passado, mostra que Salvador foi a capital pesquisada que registrou mais eventos de violência, com 68 no total. Para Márcia Tavares, professora do Programa de Pós-Graduação em Estudos Interdisciplinares Mulheres, Gênero e Feminismo, da Universidade Federal da Bahia, a realidade que muitas mulheres enfrentam na Bahia é uma justiça que falha em proteger e responsabilizar os agressores. Márcia é membro do Grupo Observatório pela Aplicação da Lei Maria da Penha, e a lei, sancionada em 2006, trata da prevenção e combate à violência doméstica e familiar contra a mulher no Brasil. “À medida que nos envolvemos com os estudos de gênero, nos damos conta de quantas vezes fomos alvo dessas violências”, afirma Márcia. Segundo a professora baiana, não é suficiente elaborar leis ou promover campanhas, é fundamental investir em ações educativas que promovam uma transformação cultural e institucional na forma como a sociedade responde às necessidades das mulheres. Nesta entrevista, ela ainda fala sobre a responsabilidade das redes sociais no fortalecimento da misoginia e os desafios impostos pela ascensão das religiões neopentecostais no Brasil na luta pela igualdade de gênero.Quais são os principais desafios na implementação de políticas públicas eficazes no combate ao feminicídio no Brasil?Nos últimos anos, temos vivido uma retração muito grande quando o assunto são os investimentos em políticas públicas por parte dos governantes. Os recursos são parcos e é possível sentir uma timidez grande nas ações. O feminicídio tem um caráter estrutural. O Brasil tem uma cultura com resquícios patriarcais muito fortes e é preciso que haja criação e monitoramento de políticas que possam chegar nas mulheres que são alvo das violências. No momento, isso não está acontecendo. Para que essas diretrizes sejam implementadas, é necessário que sejam de Estado e não dependam da vontade do governante de turno. Isso é importantíssimo. A gente não pode esquecer o retrocesso que sofremos com relação às questões de gênero nos últimos governos. Isso se intensificou na gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro, mas já era possível ver uma redução de investimento desde o governo da ex-presidente Dilma. Ela, buscando sustentabilidade política, promoveu uma redução de gastos. O primeiro setor afetado foi a política voltada para as mulheres.Como a violência de gênero se manifesta no cotidiano das mulheres brasileiras?As violências estão presentes na vida de todas as mulheres. Violências com a letra “S”, no plural. Porque, quando se fala em violência, é preciso falar sempre sobre as diversas situações que vivemos. À medida que nos envolvemos com os estudos de gênero nos damos conta de quantas vezes fomos alvo dessas violências. Às vezes, a agressão está tão entranhada nas relações sociais que ela é naturalizada. Não há alguém que não conheça uma mulher que não tenha passado por situações de violência. Eu trabalho no programa de estudos de gênero e também atuo como assistente social e, muitas vezes, na sala de aula, preciso ter abordagens mais cuidadosas. Isso porque, às vezes, estou dando aula, discutindo um texto sobre violência, e alguém que está me ouvindo me diz que passa por aquela situação todos os dias. Algumas alunas me procuram no final da aula para pedir aconselhamento. As violências têm se materializado de forma cada vez mais cruel e multifacetada nas nossas vidas. Então, não tem como deixar de não só estudar a violência, mas também de estar atenta para construir redes de acolhimento e formas de prevenir e alertar as mulheres. Nós fomos criadas para acreditar que o nosso amor é capaz de milagres. Então, as mulheres seguem acreditando que a dedicação incondicional ao parceiro vai fazer com que a pessoa mude e que as agressões diminuam. Só que a tendência é que essa violência se intensifique cada vez mais.

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A ascensão das religiões neopentecostais é um obstáculo na prevenção da violência contra a mulher?Sim. Recentemente, eu orientei uma aluna autora de uma dissertação de mestrado sobre mulheres em igrejas pentecostais. Nas entrevistas, elas contaram sobre o sofrimento delas, muitas com um grau de dor muito grande e com a autoestima completamente dilacerada por causa das violências que sofriam dentro de casa. No geral, essas mulheres recorrem à pessoa de referência de suas igrejas e têm como resposta algum conselho de que devem ter paciência e que precisam orar mais. São situações onde essas mulheres devem aceitar e se sacrificar por causa de suas religiões. Claro que essa não é uma regra. Algum pastor ou pastora pode dar apoio para que aquela mulher saia de casa, encontre uma atividade remunerada e possa sobreviver, mas, na maior parte dos casos, a Igreja prega que é preciso pedir a Deus porque ele vai prover. Então, muitas vezes, chega-se a um caso de violência letal, inclusive, com pessoas do próprio seio da igreja.O feminicídio costuma ser o estágio mais extremo de uma escalada de violências. Em sua avaliação, o que ainda falta nas políticas de prevenção para que as mulheres sejam protegidas antes que o pior aconteça?Falar sobre esse assunto incansavelmente. Assim, meninas mais jovens podem aprender que ações abusivas não devem ser naturalizadas e os meninos podem construir suas masculinidades de forma mais saudável. É preciso discutir essas questões para que as pessoas entendam que a violência não deve ser uma forma de se relacionar com ninguém. Outro ponto importante é a criação e o funcionamento dos serviços de proteção. Por exemplo, as Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (Deam), são centros de referência voltados para atender essas mulheres. No entanto, elas ainda funcionam de forma bastante precária por causa da falta de investimento. É muito importante que nossos governantes tenham mais vontade política. Até porque em capitais, como Salvador, temos uma série de serviços que podem contribuir para que existam índices menos alarmantes, mas, em cidades pequenas do interior, onde sequer temos um centro de referência especializado, a situação é pior. Se nesses lugares temos uma única delegacia, vamos capacitar os funcionários de atendimento para que eles tenham ideia do que consistem, de onde surgem e por que surgem os homicídios de mulheres. A ideia que ainda se tem é a de que a mulher provocou o parceiro para que ele cometesse aquela violência.Vivemos um momento em que as redes sociais influenciam profundamente as relações pessoais. A senhora vê essas plataformas como aliadas ou ameaças no combate ao machismo e à violência de gênero?As redes sociais alimentam a misoginia e estimulam a violência e a ideia de masculinidade agressiva. Uma coisa que é importante, além de pensar na legislação, é que escolas e famílias estejam em vigilância. Temos assistido meninas sendo submetidas a desafios nas redes sociais para serem aceitas em grupos, aos moldes do que antes eram os trotes de faculdade. Vivemos numa sociedade violenta, e essa violência não pode deixar de ser discutida. Um obstáculo enorme que enfrentamos para o avanço dessas discussões é que a sociedade ainda naturaliza as relações assimétricas entre homens e mulheres. Há uma lógica patriarcal em que a mulher está em posição de inferioridade e de submissão. É preciso desmistificar e mostrar que isso é uma construção. Essa atitude deve ser tomada desde cedo para que as meninas não cresçam reproduzindo o que elas assistem nas novelas ou ouvem nas músicas. O nosso país está em uma das primeiras colocações no ranking de feminicídios no mundo e isso é inadmissível. A América Latina e o Brasil, particularmente, tem o machismo na base da formação social e claro que isso alimenta a violência. Mas, é preciso que a gente passe a discutir essas questões nos mais diferentes espaços como comunidades, escolas, para que a gente capacite profissionais que trabalham no serviço de atendimento.Esses profissionais não são capacitados?Não! E é assustadora essa lógica da não capacitação. Os profissionais não discutem violência em seus processos de formação. A gente vê que essa discussão de gênero, raça, sexualidades e seus entrelaçamentos, assim como a violência, ainda não é foco no processo formativo das equipes que trabalham nesses serviços. Sejam advogados, assistentes sociais, psicólogos, médicos… Nós não somos treinados para conhecer a violência, então, quando surge alguém que já sofreu agressão, a tendência é minimizar a situação.

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