Ator potiguara, Juão Nÿn leva ao teatro 1º caso de LGBTfobia do Brasil

Em 1614, na então recém-fundada cidade de São Luís do Maranhão, um indígena tupinambá foi condenado à morte por soldados franceses. O motivo: seus modos de vida, suas práticas sexuais e sua existência livre, que confrontavam as normas morais impostas pelos invasores europeus. Amarrado à boca de um canhão, Tybyra foi executado — e apagado da história oficial do Brasil. Séculos se passaram até que essa história fosse lembrada novamente, graças à pesquisa do antropólogo Luiz Mott, que identificou o episódio como o primeiro caso documentado de LGBTfobia no território brasileiro.

Mas Tybyra voltou. Voltou em forma de arte, de resistência e de memória viva. Voltou pela voz, pelo corpo e pela língua de Juão Nÿn, artista potiguara, nascido e criado no bairro do Alecrim, em Natal (RN), que decidiu transformar essa história esquecida em um espetáculo cênico visceral, falado em tupi-potiguara, conduzido por elementos rituais e atravessado por espiritualidade indígena.

A peça “Tybyra – Uma Tragédia Indígena Brasileira” estreou há duas semanas no Sesc/SP e segue em cartaz por mais 15 dias (com lotação esgotada em todas as sessões). Mas a história deve percorrer o Brasil e cruzar fronteiras: Juão Nÿn deseja, inclusive, levar o trabalho à França, como um gesto de devolução histórica. “É um objetivo e já estamos conversando com equipes da França”, comenta o artista, ciente da potência simbólica desse retorno.

“Tybyra – Uma Tragédia Indígena Brasileira” é mais que teatro. É uma resposta tardia e urgente a uma violência colonial ainda presente no corpo e na alma do Brasil. Em cena, Juão revive Tybyra não como mártir, mas como símbolo ancestral de liberdade, fluidez e pertencimento. “Tudo o que sabíamos de Tybyra era sobre ele morto. Na peça, trago ele vivo, com voz, com vida”, explica Juão em entrevista ao blog.

A peça nasceu como livro, publicado em 2020 por Juão Nÿn. A obra é uma ficção inspirada no episódio real de 1614. O texto é uma resposta simbólica ao olhar colonial presente nos relatos da época — especialmente no livro do frade francês Yves d’Évreux. A dramaturgia transfere a voz da história ao corpo dissidente indígena, representado por Tybyra, e insere a perspectiva ancestral da comunidade TLGBS+. Traduzido para o tupi-guarani moderno, o livro é bilíngue e rompe com a lógica narrativa hegemônica ao recusar respostas fechadas, propondo diálogos abertos com o(s) outro(s) — e com o silêncio como presença dramatúrgica.

Em cena, Juão incorpora o personagem com intensidade, espiritualidade e dor ancestral. O espetáculo, falado em tupi-potiguara, desafia o público a sentir além das palavras. As legendas aparecem apenas em momentos-chave. A proposta é clara: romper com o teatro cerebral e convocar uma experiência sinestésica, sensorial, ritualística. Uma prática cênica decolonial e profundamente indígena.

No palco, Juão tem a companhia da cantora Clara Potiguara, nascida na terra indígena de Baía da Traição (PB) e responsável pela trilha sonora original. Clara, como Juão, também vive um processo de redescoberta da própria língua ancestral. Ao cantar em tupi, ela reencontra uma parte de si — e do seu povo. Antes da estreia em São Paulo, a peça percorreu aldeias indígenas no interior do estado. A decisão de começar pelos territórios tradicionais reafirma a proposta de um teatro de retomada, que inverte a lógica colonial da arte como ferramenta de dominação. “O teatro foi a primeira linguagem artística a colonizar o Brasil. Foi usado para ensinar o português, o cristianismo. Entendi que deveria fazer o oposto — usar o teatro para devolver a dignidade às línguas e aos corpos indígenas”, afirma Juão.

De Natal ao mundo: o corpo como território

Juão Nÿn nasceu em 1989, em Natal, mas viveu parte da adolescência em Curitiba. Desde pequeno, sentia que sua vida teria que ser guiada pela arte. O teatro entrou de vez em sua trajetória quando voltou ao Rio Grande do Norte e assistiu a um espetáculo do grupo Clowns de Shakespeare. Hoje, vive em São Paulo, onde a arte é seu ofício. Além de ator, é performer, músico e criador de arte radical. Em Natal, fundou a banda punk AK-47, conhecida por seus shows performáticos — como o dia em que subiu ao palco com 240 baratas vivas no corpo. Mais tarde, formou o duo Andróide Sem Par, com três álbuns lançados. Já na capital paulista, uniu-se ao coletivo Estopô Balaio, que há dez anos propõe um teatro popular e político nas ruas e nos trens da periferia — uma arte sem moldura, sem cortina e sem palco tradicional.

Foi também em São Paulo que sua identidade indígena se inflamou. E, com o contraste, veio o chamado: conectar-se às raízes potiguares e à luta por visibilidade de seu povo.

No Rio Grande do Norte, como ele lembra, não há sequer uma terra indígena demarcada. A ausência de reconhecimento institucional reforça o apagamento histórico. Ainda assim, Juão se afirma como guerreiro da cultura, atuando na Articulação dos Povos Indígenas do RN (Apirn) e participando das mobilizações nacionais por demarcação e direitos.

A palavra como alma, o palco como território

Para Juão Nÿnpalavra é alma. É por isso que afirma: “colocarem outra alma sobre nós foi um exorcismo colonial”. Sua arte, portanto, é também um chamado ao despertar. Um grito ancestral que vem do Rio Grande do Norte e ecoa em palcos cada vez mais distantes — e mais atentos.

A peça Tybyra, que nasceu de um desejo solitário de fazer um monólogo em 2019, tornou-se um marco do teatro indígena contemporâneo e agora está pronta para atravessar o Atlântico. Quando isso acontecer, será mais do que uma apresentação: será um ato de devolução poética, uma forma de dizer ao mundo que a cultura indígena do Brasil está viva, fala sua própria língua e ocupa o lugar que lhe foi negado.

Conheça um pouco do texto do livro que deu origem à peça:

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