A recusa da política e crise da representação

 Diversas pesquisas, de distintos institutos, têm constatado a existência de uma profunda descrença e desencanto em relação à política, aos partidos e seus representantes, aos parlamentos e entre suas consequências, a recusa à participação política, expressa em abstenções, votos em brancos e nulos em eleições. 

No Brasil, na eleição presidencial de outubro de 2022, por exemplo, no primeiro turno a abstenção foi 20,59% (em 2018 foi 20,3%) e no segundo turno 20,9 %: o maior percentual desde 1998, com 32.200.353   de eleitores que somados  aos votos em brancos e nulos  totalizaram quase 38 milhões de eleitores dos 156.454.011 aptos a votar.

Na eleição municipal de 2024, a abstenção no primeiro turno foi 21,7%, pouco mais de 32 milhões de pessoas, aumentando para 29,26% no segundo turno. Dos 33.996.477 aptos a votar , 9.947.369 não compareceram às urnas e somado aos votos em brancos e nulos, foi maior do que os votos dos prefeitos eleitos de São Paulo,  Belo Horizonte, Porto Alegre, Curitiba e Goiânia,  entre as 51 cidades que tiveram segundo turno, entre elas, 15 capitais, cujo maior  índice de abstenções foi Porto Alegre com 31,51% no eleitorado no primeiro turno e 34,83% no segundo,  da mesma forma muitos prefeitos eleitos  no primeiro turno, como Eduardo Paes  no  Rio de Janeiro e o foram com menos votos do que a soma de abstenções, votos em brancos e nulos.

Um número tão grande de abstenções, votos nulos e em brancos põe em xeque o próprio modelo de representação, e expressa uma crise de representação política.

 O desencanto com a política é expressão de um hiato entre sociedade e Estado, da não participação dos cidadãos em instâncias decisivas, como os parlamentos (municipal, estadual e federal) e, portanto, ausência de inserção no espaço público, que se reduz apenas ao direito de votar periodicamente.

E em um país sem tradição democrática, como o Brasil, a não participação e/ou a recusa à participação pode trazer graves consequências. A antipolítica e a rejeição à participação política podem levar à passividade e abrem a possibilidade de aventureiros e vigaristas se aproveitarem, reforçando os discursos contra os partidos, os políticos e até contra “o sistema” (embora fazendo parte dele, usando esses discursos  para enganar, e não raro defendendo saídas autoritárias e mesmo ditaduras… em nome do povo).

A participação no processo político não deve ser apenas  eleitoral, o ato de votar, que é apenas uma das suas  formas  e ainda mais considerando o processo eleitoral fica comprometido quando os eleitos o são com base em mentiras e promessas  não-realizáveis, com o uso de marketing e o claro intuito de enganar . eleitor (a), compra de votos  e também quando as disputas eleitorais são desiguais, com o primado e decisivo poder econômico. 

O resultado desse processo para uma parcela considerável dos aptos a votar é a decepção com os políticos, os partidos que dizem representar o povo e não o fazem e que leva a uma desconfiança nas instituições representativas.  

A filósofa alemã Hannah Arendt (1906-1975) no livro A dignidade da política (publicado no Brasil pela Editora Relume Dumará em 1993) reúne um conjunto de ensaios e conferências entre 1946 e 1975 e em um dos ensaios  indaga justamente se a política tem ainda algum sentido e responde que sim. Para ela, o sentido da política é a liberdade, compreendida em sua concepção mais ampla, que não se resume a liberdade de votar e tem como locus o espaço público. As pessoas só podem ser consideradas livres se estão de fato inseridos na esfera pública e com a possibilidade de participação ativa nela (No livro A condição humana, publicado em 1958 e no Brasil em 2014 pela Editora Gen/Forense Universitária, no capítulo II – pgs 27 a 96 – ela aprofunda a análise sobre o que chamou de  “Os domínios público e privado”. Ver também o artigo Hannah Arendt e a dignidade da política, de Glauber Xavier. Revista Brasileira de Ciências Sociais, n.30, junho/2015).

Para ela, a política é uma dimensão essencial da condição humana e a esfera política dignifica a condição humana e que não pode (e nem deve) ser reduzida a política dos partidos (e ao jogo parlamentar) e a realização de eleições periódicas. 

Se o sistema representativo traz consigo a concepção de que é possível prescindir da participação popular na gestão da coisa pública os cidadãos, no dizer de Hannah Arendt, “não são considerados capazes, devendo a sua gestão ser confiada a especialistas”. 

Como diz André Duarte, um dos especialistas brasileiros em Hannah Arendt no artigo Hannah Arendt e a modernidade: esquecimento e redescoberta da política (Revista Trans/Form/Ação, São Paulo, n. 24, 2001)“Nesse contexto, a atividade política tende a se reduzir à administração dos interesses privados, desaparecendo o próprio espaço público em seu caráter plural e comum”.

Ao analisar os regimes totalitários no livro Origens do totalitarismo –antissemitismo – imperialismo – totalitarismo (publicado em 1951 eno Brasil  em 1997 pela Editora Companhia das Letras), Hannah Arendt mostra como houve um processo de destruição do espaço público, uma vez que não havia uma condição essencial: a liberdade. O totalitarismo, enquanto uma nova categoria política, não visava
apenas reprimir ou limitar a liberdade dos cidadãos, mas destruí-la. Essencialmente se tratou , como ela argumenta, de uma tentativa de aniquilação da condição humana. O objetivo da educação totalitária, como ela afirma,  nunca foi de incutir convicções, mas destruir a capacidade de forma uma.

A perda da liberdade foi uma condição essencial para o êxito dos regimes  totalitários (e das ditaduras em geral) e se tornaram possíveis porque as pessoas estavam isoladas, atomizados e despreocupadas com as questões políticas e mobilizadas apenas para legitimá-los, sem qualquer possibilidade de participação. 

A não participação e a recusa da política pode pavimentar o caminho de ditaduras. E uma das condições de sua existência é o apoio das  massas,  em uma sociedade de massas, na qual existem os indiferentes ao mundo político, composta por indivíduos  isolados, que não assumem as responsabilidades  inerentes à participação na esfera pública. 

Para Hannah Arendt, potencialmente, as massas existem em qualquer país e constituem a maioria das pessoas “neutras” e politicamente indiferentes, que nunca se filiam a um partido e raramente exercem o poder de voto. (Origens do totalitarismo, p.361).

André Duarte analisando o pensamento político de Hannah Arendt, afirma que a construção dos seus argumentos (mais amplos e profundos) se remete a uma reflexão a respeito da própria modernidade no qual existe um “obscurecimento das determinações políticas democráticas, pois, onde a política não foi reduzida ao plano da violência, como no caso dos  regimes totalitários, ela foi reduzida ao plano da administração burocrática dos interesses econômicos da sociedade” (de parcelas  minoritárias, acrescento).

A questão central é: existe a possibilidade de uma revitalização da política em suas determinações democráticas originárias, de se restabelecer os laços entre a ação política e a liberdade, ou seja, em que a ação política, ao contrário do que ocorreu com a experiência totalitária (e nas ditaduras) seja garantida?

Em um contexto de apatia e/ou impotência política no qual a maioria da população não exerce qualquer influência política, no qual o povo é excluído da cena pública, a ação política fica limitada e política se torna um espaço para defesa de privilégios de poucos (dos que exercem mandatos eletivos, por exemplo, e dos financiadores de suas campanhas eleitorais, beneficiários de suas ações no parlamento etc.). 

Nesse sentido, como considerar democráticos  governos  que foram eleitos pelo voto, quando o próprio voto está comprometido pelo uso (e abuso) de mentiras, do poder econômico (compra de votos  etc.?).

 Para Hannah Arendt, as chamadas democracias  nos séculos XIX e XX seria na verdade a expressão do poder de uma oligarquia e portanto, na prática, não democráticos, com o poder concentrado nas mãos de poucos. 

No livro Sobre a revolução (Editora Companhia das Letras, 2011) ela faz uma crítica o sistema representativo, a relação entre representantes e representados, comparando as revoluções francesa e americana e defende, como alternativa às fragilidades da representação – que não representa de fato a quem diz representar – o que ela chamou de “a salvação do espírito revolucionário por meio da República”, a constituição de Conselhos como novas instituições, com ampla participação, como espaço político que garanta a liberdade (embora, registre-se,  não tenha se consolidado em novas formas de governança nas democracias representativas).

E no sistema representativo que ela critica, os partidos políticos, como instituições, não podem ser vistos como órgãos efetivamente populares porque não possibilita uma ampla participação dos representados. 

Contra o primado da representação política considerada como “a única alternativa política viável no mundo contemporâneo”, ela buscou analisar o que chamou de “vínculo indissociável entre liberdade, ação conjunta e felicidade pública” e seu papel na política representativa. Sua pretensão não era a de recusar os seus avanços, os ganhos da democracia parlamentar, mas refletir também sobre seus limites, e como afirma Duarte,  encontrar alternativas para redefini-la no sentido de preservar as pequenas ‘ilhas da liberdade’, daí a necessidade da “invenção de novas formas de exercício da política e de novas formas de pensamento, capazes de recapturar e retraduzir em um instante a origem democrática da política”.

Hoje, o desprezo pela política, à recusa de participação, inclusive em processos eleitorais, é compreensível, de certa forma, expressa uma crise de representação política quando se observa e analisa o exercício dos mandatos de muitos dos (pretensos) representantes no parlamento. E nesse sentido, se faz necessário (re) constituir o que Hannah Arendt chamou de à dignidade da política, resgatando o valor da política e da liberdade no qual a participação ativa e livre dos cidadãos na esfera política é fundamental porque como ela diz, dignifica a condição humana, e que só se torna possível com governos legítimos e efetivamente democráticos. 

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