O carrinho de bebê no parque, a mãe embala a filha com delicadeza, dá mamadeira e depois enxuga o canto da boca com um daqueles paninhos macios para pele de bebê. Tudo parece comum — até alguém perceber que o bebê é uma boneca. A cena, cada vez mais frequente no Brasil – e em outros países -, é protagonizada por mulheres que encontram nas bonecas reborn um vínculo afetivo profundo. Longe de ser brincadeira de criança, o fenômeno das “mães de bonecas” tem despertado curiosidade – críticas – e, mais recentemente, interesse científico.
Como se sabe, as bonecas reborn são réplicas hiper-realistas de bebês, com peso, textura e aparência semelhantes às de um recém-nascido. Elas podem custar centenas ou até milhares de reais, inclusive, exigem cuidados específicos como dar banho, trocar fraldas e vestir roupinhas – e, acredite, mais do que um item colecionável, essas bonecas se tornaram símbolos de afeto, conforto e, para muitas, uma forma simbólica de vivenciar a maternidade.
Mas, por que mulheres se tornam mães de bonecas? As motivações são diversas. Algumas passaram por perdas gestacionais ou não puderam ter filhos. Outras simplesmente encontram prazer no ato de cuidar. E o que a ciência vem demonstrando é que esse vínculo, por mais incomum que pareça, pode ser real e terapêutico.
A teoria do apego, de John Bowlby, ajuda a explicar esse comportamento. Segundo a psiquiatra e professora universitária Dra. Maria Carolina Pinheiro, a teoria do apego seria uma forma interessante de não olhar o fenômeno dos bebês reborn como doença, mas sim como uma estratégia de cura frente à carência afetiva, luto ou idealizações sociais.
“Os padrões de apego formados na infância influenciam a maneira como os adultos lidam com relacionamentos, perdas e necessidades afetivas. Assim, se tiveram vínculos inseguros, como negligência emocional ou perdas precoces, podem buscar objetos substitutos para suprir a necessidade de conexão,” diz. Ela explica ainda que o realismo dessas bonecas ativa circuitos neurais associados ao cuidado parental, oferecendo uma fonte simbólica de segurança — sobretudo em contextos de solidão ou luto perinatal.
“O ritual de cuidar do reborn (alimentar, vestir, acariciar) permite a exteriorização do luto, ajudando na reorganização emocional. Embora o uso terapêutico dos reborns seja válido em casos específicos, é importante olharmos para o risco de substituição de relações reais. Quando o apego à boneca impede a formação de vínculos humanos ou reforça padrões dissociativos, pode indicar fragilidades emocionais não resolvidas, exigindo intervenção profissional,” esclarece a psiquiatra.
Terapia, substituição ou sinal de sofrimento?
Um estudo clínico realizado na Itália (2021) sobre Terapia com bonecas em idosos com demência, mostrou que o uso de bonecas em casas de repouso reduziu significativamente sintomas como agressividade, apatia e agitação em pacientes com demência. Também diminuiu a sobrecarga emocional de cuidadores e a incidência de delírio entre os idosos.
As bonecas atuam como objetos transicionais, reorganizando a relação do indivíduo com o mundo e consigo mesmo. Na visão do psicanalista e professor da USP, Christian Dunker, o uso da reborn pode funcionar como uma metáfora saudável — em casos como a elaboração de um luto ou a fobia à maternidade –, mas também pode se transformar em uma substituição problemática:
“A boneca tem uma função metafórica, de elaborar ficcionalmente aquilo que não consegue ser bem subjetivado pela pessoa. Mas há usos não metafóricos, em que a confusão com a realidade aumenta de tal maneira que você tem uma verdadeira substituição. Esse processo pode ter função para quem vive, mas causa estranhamento em quem observa — porque parece pular o processo do luto,” explica.
A Dra. Maria Carolina destaca que é importante não patologizar o fenômeno dos bebês reborn. “Quando tantas pessoas dividem o mesmo comportamento, é preciso entendê-lo como fenômeno social, não como doença individual. […] De alguma forma, mesmo que haja afeto, o que se tem é uma projeção simbólica — como acontece nos jogos lúdicos. Apenas quando se perde a distinção entre fantasia e realidade, pode haver indicação de transtorno psiquiátrico.”
Segundo ela, existem critérios funcionais e contextuais que ajudam a diferenciar entre um uso terapêutico e um comportamento que exige atenção clínica. “Se o uso da boneca substitui relações humanas, causa isolamento progressivo ou compulsões — como lavar ou vestir repetidamente para aliviar a ansiedade, consumindo muito tempo da pessoa — ou se há crenças delirantes em que se perde o limite entre o real e a fantasia, pode haver necessidade de intervenção,” pondera.
Muitas mães de boneca compartilham nas redes sociais suas rotinas de cuidado, montam enxovais e participam de grupos on-line que funcionam como verdadeiras redes de apoio emocional. Esse comportamento foi analisado no artigo científico “Relações sintéticas com bonecas e seus efeitos simbólicos e terapêuticos”, da doutora em Humanidades Emilie St-Hilaire, da Concordia University, publicado no American Journal of Play (2024).
Segundo a pesquisa, 80% das entrevistadas consideram os fóruns online fundamentais para o seu bem-estar emocional. Além disso, a prática envolve o conceito de retail therapy, a compra de roupas e acessórios para os bonecos reborn como uma forma simbólica de expressar afeto, elaborar lutos ou experimentar a maternidade de maneira controlada, sem os desafios concretos de criar um filho.
Para Dunker, o fenômeno revela uma nova forma de vínculo na era contemporânea. “Esses objetos funcionam como suportes simbólicos. Aprendemos e ensaiamos a paternidade ou maternidade com eles. Mas quando a relação se torna hiperintensa, as fronteiras entre fantasia e realidade se afinam — e aí surge o estranhamento. A boneca tem pele, cabelo e gestos realistas. Só o olhar não acompanha, o que nos remete ao ‘vale da estranheza’.”
Mais do que sintoma individual, o fenômeno pode ser reflexo de impasses sociais e emocionais da contemporaneidade. Para Dunker, essa prática pode estar ligada ao aumento da solidão em grandes centros urbanos — mas também aos dilemas impostos pela maternidade hoje.
“A interrupção de carreira, efeitos no corpo, medo de fracassar como mãe. O reborn oferece uma maternidade sem ônus, um ‘filho que não chora, não adoece, não cresce’. Ele representa o desejo sem o risco,” analisa o psicanalista.
Dunker propõe ainda uma reflexão não apenas sobre quem pratica, mas sobre o incômodo que essa prática causa no outro. “Por que achamos estranho? Porque há um ponto em que o semelhante se torna excessivamente parecido — e isso nos assusta. O termo ‘reborn‘ (renascido) sugere que algo se perdeu e precisa ser resgatado. É aí que essa prática se aproxima do luto e das nossas próprias dificuldades em lidar com a perda,” explica.
Em tempos marcados por ansiedade, hiperindividualismo e vínculos frágeis, o cuidado com bonecas reborn pode representar tanto uma busca legítima por afeto quanto uma tentativa simbólica de reorganizar a dor. E como conclui a pesquisadora St-Hilaire, buscar companhia e graça em um relacionamento sintético pode parecer estranho, mas talvez seja, justamente, um gesto de esperança: um abrigo delicado contra o peso do mundo.
(Fonte: Estadão)
O post Mãe de bebê reborn: é sério ou é brincadeira? Entenda o fenômeno apareceu primeiro em Correio de Carajás.