Baiano lança livro que mistura Voltaire, Nordeste e realismo mágico

Em algum lugar pelo interior da Bahia está a cidade de Redenção. De alguma forma irrastreável, ela se desloca em eterna romaria. O município itinerante é uma criação do escritor baiano Ian Fraser e será onde começa a jornada do seu novo livro, Cartografia para Caminhos Incertos.Embora Redenção seja uma personagem importante, o protagonista da história se chama Mané. O rapaz deixa a cidade e parte em busca de um amor ideal, e na tentativa de voltar para Redenção ele acaba vivendo outras experiências e conhecendo a si mesmo.O livro cria esse universo de realismo fantástico, misturando fantasia e elementos da cultura regional para narrar os caminhos do personagem.Ian Fraser contou que a ideia do livro surgiu após a leitura de A Cabeça do Santo, da escritora cearense Socorro Acioli, junto com algumas outras obras que o marcaram. “Fiquei com aquela narrativa na minha cabeça. O começo é sobre o homem que chega ao final de uma grande caminhada, e me encantou muito como aquilo era poético”, lembra.A partir daí, memórias escolares de Cândido, ou o Otimismo, de Voltaire, se somaram às ideias. “Essas duas obras começaram a dançar na minha cabeça”, diz ele.Com esse caldeirão de influências, o autor construiu Redenção: “A cidade nasce como uma crítica ao imaginário de paraíso. Essa ideia de que existe um lugar que a gente precisa alcançar, como se tivéssemos que pedir desculpa por ter nascido. É uma crítica política e social muito clara: esse lugar onde temos que pedir perdão por existir”.Natural de Salvador, Fraser costuma trazer em suas obras referências à cultura regional. Em 2023, foi finalista do Prêmio Jabuti com o livro A vida e as mortes de Severino Olho de Dendê, que se passa numa galáxia muito distante, no planeta Cabula XI, referência ao bairro soteropolitano.“Eu fui alfabetizado em inglês numa escola em Salvador, então por muito tempo eu me sentia deslocado da representação da baianidade”, conta.Foi só após um comentário de uma amiga, quando escrevia seu primeiro livro, que se deu conta: “Ela me disse: ‘tô cansada de ver brasileiro escrevendo para estrangeiro’. Isso me fez pensar: por que eu tô gastando minha criatividade exaltando uma cultura que não é a minha”?Desde então, essa reconexão com o território tem sido seu motor criativo: “Virou fácil migrar da cartografia real para uma cartografia de cidades encantadas. A cidade é um grande experimento social. É nela que a gente aprende a virar gente”.TramaA história começa em Redenção, com o protagonista, Mané, que sonha em ser o poeta perfeito e vive um romance com Jeremias. O desejo pela perfeição do protagonista vai além da poesia, ele quer ter o beijo perfeito com o namorado, que cause uma revoada de borboletas.Com o incentivo de Jeremias, Mané vai em busca desse ideal e acaba passando dos limites de Redenção, perdendo a cidade. A partir disso sua missão passa a ser também tentar retornar. No caminho ele conhece lugares e personagens que vão se somando e construindo quem ele é.A jornada de Mané é também uma homenagem direta ao Cândido, de Voltaire. Mas, diferente do autor francês, Ian disse não conseguir ser muito duro com seus personagens, “Cândido sofre muito nas mãos do autor. Eu não sou assim. Eu proponho experiências que ajudem o Mané a crescer”, afirma.Para construir o protagonista, o autor buscou inspiração também em algumas experiências pessoais.“Mané é muito inspirado em mim, nas minhas inquietações. O grande dilema dele é viver esse grande amor perfeito. ‘Será que vou ser amado sendo quem eu sou’? A relação entre Mané e Jeremias é uma provocação que faço sobre os perigos de colocar o amor romântico acima da própria experiência de vida. Muitas vezes, acreditamos que esse amor ideal é o ápice da existência, e isso pode ser perigoso”.A busca atravessa diferentes cidades – cada uma com suas características simbólicas que dialogam com inquietações contemporâneas — tanto do autor quanto da sociedade.“Ele vive experiências que falam de coisas que me atravessam ou que vejo que atravessam o mundo. Ele aprende com essas vivências, vai compreendendo conceitos, signos, ideias. A própria ideia de semiose entra na história: o que é a coisa, o que é o signo e o que é a representação”.Um dos momentos marcantes da jornada é quando Mané chega a Lemniscata, cidade-palíndromo cujo nome remete ao símbolo do infinito. “Ali ele entende que a vida é uma folha em branco, e a gente vai pintando. Não tem erro, tem construção. As cidades funcionam como culturas que compõem esse grande quadro que é o Mané. A cada novo lugar, ele vai se formando como sujeito”.

|  Foto: Divulgação

Em transformaçãoIan vê a literatura brasileira atual como um campo de efervescência e ruptura. “Tem muita gente escrevendo agora que está se propondo a sair do esperado, misturando linguagens, formas e identidades. É um momento fértil, mas também muito fragmentado”.Para ele, Cartografia para Caminhos Incertos é uma tentativa de somar a esse movimento com “algo que fique para além de mim”.Em suas próprias palavras: “Todos os meus livros vão viver mais do que eu, porque o papel dura mais que a carne. Mas esse, em especial, é o meu grito mais pessoal. É onde eu realmente digo quem eu sou e de onde vim”, conclui.Lancamento ‘Cartografia para Caminhos Incertos’ / Amanhã (13), 19h / Colégio Anglo-Brasileiro (Rua Edith Mendes da Gama e Abreu – Itaigara)*Sob supervisão do editor Chico Castro Jr.

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