Ninguém percebe o mundo de fato, sem de fato se perceber nele… Sem entender-se como elemento essencial, como peça de uma grande engrenagem.
Ninguém realmente está no mundo sem se saber nele, sem encontrar os encaixes que botam a coisa para funcionar. E essa coisa é a vida, é nossa vida, única e intransferível.
Para mim foi uma revelação, uma epifania, (explosão) – como se repete em A hora da Estrela de Clarice. Percebi-me no mundo, entendi-me no mundo, sei que peça sou e onde me encaixo…
Um dia minha engrenagem gemeu, forçou-se, gemeu mais forte e pegou, meio no tranco, mas pegou, engrenou e fluiu, seguiu seu fluxo, mastigou e engoliu todos os dentes, um a um… desembestou…
Sobretudo depois de entender mais e mais dessa máquina-vida, máquina-desejante, compossível, máquina-devir… entender que pra ela se manter, combustível…
Fui atrás, encontrei e descobri também que minha engenharia era total flex, aceitava e se adaptava a muitos combustíveis, e depois a muitos óleos e graxas e vaselinas e sebos e cuspes…
Engrenagem, combustível e manutenção… eu era e isso me bastava.
E o mundo se curvou… abriu-se inteiro, escancarou-se, desnudou-se, arreganhou-se voluptuosamente. E eu, afoita, caí de boca, lambuzei-me.
Deixei de ser ninguém no mundo e para o mundo. Tornei-me um tudo de um tudo maior. Minha inteireza, minha máquina eram imponentes demais para serem ignoradas, como todas as outros ninguéns que deixaram de ser esses ninguéns quando se descobriram. Quando “foram” pela primeira vez.
Fazer parte do mundo é abocanhá-lo, é fazer dele parte de você. É se prender em outras tantas partes, para que haja mais vida se movendo, se entranhando, se estranhando, colidindo, se enganchando, se soltando, se quebrando, se perdendo…
Existirão novas máquinas-desejantes a caminho. Novas engrenagens outras, que já não se encaixam, que já trabalham diferente, porque diferente já é o mundo.
E assim vamos mastigando tudo a nossa frente, porque esse negócio de perceber o mundo de fato, dá trabalho demais, mas há beleza nisso tudo também. Que sejamos capazes de contemplá-las, elas, todas as belezas que há é ser quem se é.
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