“Atuais tecnologias são verdadeiras caixas pretas”, diz Eduard Aibar

Inovação e empreendedorismo são duas das palavras que mais ouvimos no mundo contemporâneo. Eduard Aibar, pesquisador da filosofia da ciência, fala nesta entrevista do seu livro lançado na Espanha, ano passado, O Culto da Inovação, ainda não traduzido para o português. Aibar questiona a obsolescência programada dos equipamentos tecnológicos, ao afirmar que essas tecnologias “se tornaram opacas”, não sendo possível “saber nada sobre elas, são caixas pretas, black box, e não podemos saber o que contêm”. Ele defende um movimento de retorno à prática de consertar as coisas, para evitar que tudo seja jogado fora.Como foi sua trajetória acadêmica e o que o levou à filosofia da ciência?Eu estudei filosofia na Universidade de Barcelona e me interessei logo pela filosofia da ciência. Na época, tive um professor que me introduziu para o que então, início dos anos 1980, era uma área nova, sobretudo no mundo anglo-saxão, chamada STS, Science and Technology Studies. Foi o momento que entramos em contato com alguns dos nomes importantes, a exemplo do francês Bruno Latour. Eu, junto com outros companheiros, fui o primeiro tradutor para o espanhol de Latour, com o livro Ciência em Ação. Depois, fiz um pós-doutoramento na Holanda, com Wiebe E. Bijker, que criou a teoria Scott – The Social Construction of Technology (Construção Social da Tecnologia), que basicamente diz serem as tecnologias um produto de diferentes forças sociais, e não só uma questão técnica.Dando um salto no tempo, queremos falar sobre o seu recente livro O Culto da Inovação. Como nasceu a publicação?Havia duas motivações, uma mais teórica e outra mais pessoal. A teórica nasce de pesquisadores como nós, que têm observado, nos últimos 15 anos, uma forte ênfase ao aspecto da inovação, colocando a tecnologia como sinônimo de inovação. Nos demos conta que, na realidade, a inovação é apenas uma pequena parte da tecnologia. Por exemplo, se olharmos a geografia mundial da inovação, no âmbito das tecnologias digitais as grandes inovações são feitas em quatro ou cinco lugares do mundo. Na costa oeste (Vale do Silício) e um pouco na costa leste norte-americana, um outro pequeno foco na Europa e mais uns outros dois na Ásia, e pronto. Além disso, ela é construída por pessoas muito semelhantes, homens brancos, poucas mulheres, homens com um grande salário e com ideias políticas semelhantes. E, no entanto, se olharmos para aqueles que as utilizam, que usam os artefatos digitais, a própria geografia do uso não tem nada a ver com essa desses poucos lugares, porque abrange quase o mundo todo, muitas mulheres, muitos países e pessoas do sul global. É, portanto, uma geografia muito diferente. Então, se o que você quer ver é a relevância social de uma tecnologia, é melhor que olhe para o uso e não só para a inovação. Mas, isso é só um aspecto. Há outros aspectos da tecnologia que querem que sejam esquecidos, por exemplo a reparação e a manutenção dos equipamentos. Nos países do primeiro mundo, parece que quando um aparelho não funciona, você o joga fora e compra outro. Porém, para muitos, é imprescindível fazer a manutenção ou consertar os artefatos, portanto a reparação está em evidência. Esse é outro aspecto relevante que fica de fora do debate.Isso é o que você chama no livro de ‘Cafeteria de Inovação’?Sim. Em Barcelona, tem um grupo, que se chama Restartes Barcelona, para onde levamos nossos aparelhos com pequenas avarias para serem coletivamente consertados. É importante a sua pergunta, porque há uma quantidade de coisas que ficam ocultas quando colocamos o foco somente na inovação. Entre elas, está a necessidade de compreender que existem muitas tecnologias que não são sofisticadas, que não são recentes, de mais de mil anos, mas que são tecnologias. São aparatos tecnológicos que utilizamos até hoje. E por que eles não aparecem quando pensamos em inovação tecnológica? E há outra pergunta: por que isso não mudou quase nada em mil anos? Pode ter cor diferente, material diferente, composição diferente, etc, mas a funcionalidade se mantém. Porque, talvez, seja um artefato que se adapta muito bem às nossas necessidades, às formas que vamos dando ao nosso modo de viver. Por outro lado, atrás da ideologia da inovação há uma visão que é o inverso do cuidado, que é uma visão da ruptura. Hoje só queremos inovações que criam rupturas, que no final não trazem grandes rupturas, porque perpetuam um mesmo sistema. Desse modo, cria-se essa visão que uma tecnologia inovadora precisa ser disruptiva, e com isso a ideia de que nós, consequentemente, precisamos nos adaptar a essas tecnologias. A outra motivação por trás da escrita deste livro, que é a mais pessoal, é que, sendo professor nos últimos 15 anos, tenho sido bombardeado na minha universidade, mas creio que em quase todas as universidades isso tem acontecido, com a ideia de que para ser um bom professor agora você tem que ser um inovador potente. A partir daí eu comecei a perguntar às pessoas: pense nos seus melhores professores, aqueles que você teve na sua vida desde a escola primária, pense bem, que imagem temos, eram eles os mais inovadores?! A maioria me disse que não, e eu também acho que não. Em alguns casos, claro que sim, não quero generalizar e dizer que todos os professores inovadores, pedagogicamente eram ruins, alguns eram muito bons. Mas, talvez, não seja isso o mais importante. Ser um professor inovador se tornou uma peça super importante no discurso atual. Porém, o que está em jogo não é a inovação docente no sentido pedagógico, mas uma compreensão reducionista que acaba focando na introdução de um novo tipo de artefato ou software que você inseriu na sua docência.Esse é um importante ponto, a inovação na educação. Que pedagogia é essa que somos requisitados a pensar?Na Catalunha, por exemplo, há muitas escolas que, antes, em sua publicidade para conseguir atrair estudantes, diziam: somos uma escola que fortalece a autonomia das crianças. Agora, muitas escolas têm como slogan: somos uma escola inovadora. Esta é uma mudança discursiva muito forte, e não só discursiva, pois há muitas mudanças no currículo, com uma evidência da presença da lógica do mercado na educação. Eu preciso dizer que o meu livro não é uma crítica à inovação, mas a uma ideologia da inovação, que tem essa origem neoliberal, mas que, como está envolta em uma linguagem que parece que não é política, foi comprada também pela esquerda política, não só pela direita. Então, o que eu digo é que há outras formas de aproximar-se da inovação tecnológica, por exemplo com o hacker, que tem uma ideia diferente da tecnologia, porque para ele a tecnologia é também um meio de comunidade, de cuidado e de criar comunidade, isso é algo inerente.E quais as possibilidades de hackearmos essas tecnologias que se dizem inovadoras?Neste âmbito de STS há uma investigadora francesa que há muitos anos já dizia que toda a tecnologia tem dentro de si um script invisível, uma perspectiva de uso que diz qual é o uso correto e qual é o uso incorreto. Mas, da mesma forma que há esse script, há também formas de hackear ou mudar esse uso, e isso é o que fazem normalmente os usuários, quando eles podem. O que acontece é que muitos dos atuais aparatos já estão feitos para que não sejam manipulados, nem mesmo um software, e essa discussão é importante. Posso te dar um exemplo: os primeiros automóveis foram fabricados e vendidos em um tempo em que inexistiam oficinas para consertá-los. As empresas que faziam carros, por sua vez, ensinavam seus consumidores como arrumá-los e isso fez com que nas primeiras décadas muitas inovações viessem dos próprios usuários, que manipulando aquela tecnologia encontravam melhores maneiras de fazê-la funcionar. Mas o que acontece agora? Agora não sabemos, e não sabemos por quê? Porque são tecnologias que se tornaram opacas, não é possível saber nada sobre as peças de um carro, são caixas pretas e não podemos saber o que contêm.Como enfrentar esse dilema da ideologia da inovação na educação?Eu penso que no mundo, sobretudo na universidade, a ideologia da inovação está tendo um impacto não apenas na docência, nas práticas de ensino, mas em outra missão muito importante da universidade, que é a pesquisa. Ou seja, está atingindo diretamente a produção da ciência, gerando impactos que eu acredito sejam muito negativos. E isso vem acontecendo há pelo menos 20 anos, quando se observa que institucionalmente se favorece uma investigação científica de resultados aplicados a curto prazo. Suponho que aqui aconteça o mesmo que na Espanha, pois lá, quando pedimos financiamento para uma pesquisa, temos que mencionar os seus impactos. Eu sempre pergunto: imagina se Albert Einstein tivesse a necessidade de mencionar os impactos da teoria da relatividade? Como podemos prever os impactos da ciência? Às vezes, eles podem ocorrer ao longo de 50 anos. Einstein, agora, possivelmente não seria financiado, porque a sua investigação não preveria o seu impacto para cinco anos depois. Então, isso está mudando. Por exemplo, no âmbito das ciências da saúde, se alguém está preocupado com uma doença, a ênfase na inovação acaba favorecendo a investigação na busca da cura, de um produto, e considera apenas quem pode pagar por isso, ou seja, por um medicamento ou tratamento. Mas não podemos esquecer que a investigação médica tem outras linhas: se tem a de curar, também tem a de prevenir, que é muito importante. No entanto, como a prevenção não gera produto, isso fica em segundo plano. E isso está acontecendo em muitas esferas, como nas humanidades: é um impacto enorme sobre a ciência em geral.
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