‘O mundo hoje favorece um Papa com perfil discreto e diplomático’

A Igreja Católica está prestes a viver mais um momento decisivo com a escolha do novo Papa — e, para muita gente dentro e fora do Vaticano, o cenário pede alguém com capacidade de diálogo e um perfil conciliador. Para o jornalista Filipe Domingues, especialista no Vaticano, a hora é de apostar em uma liderança que saiba mediar conflitos e manter o caminho de reformas iniciado por Francisco.Em entrevista exclusiva ao A TARDE, Filipe fala sobre o legado do primeiro Papa latino-americano, a força de sua espiritualidade jesuíta e o simbolismo da sua morte logo após a Páscoa, em pleno ano do Jubileu. “Francisco foi um Papa que abriu portas — no gesto e na prática — e fez muita gente se sentir parte da Igreja de novo”, diz.Apesar de reconhecer a imprevisibilidade do conclave, Filipe acredita que o sucessor de Papa Francisco deve vir com um perfil mais discreto e diplomático. Ele aposta em nomes da Europa e não descarta a influência crescente da Ásia e da África nas decisões da Igreja. “O mais provável é que venha alguém que continue o que foi feito até aqui, mas com um estilo mais contido”, resume. Saiba mais na entrevista a seguir.Filipe, você teve a oportunidade rara de conhecer pessoalmente o Papa Francisco. Que impressão ele deixou em você como pessoa e líder espiritual?O Papa Francisco era uma pessoa sempre muito acolhedora. Ele estava sempre sorrindo. Às vezes a gente ia em algum encontro que tinha ali 300, 400 pessoas. E ele, às vezes, abreviava o discurso para poder cumprimentar todo mundo. Ele queria mesmo esse contato. Ele falava, ‘ah, o discurso eu vou entregar para vocês por escrito, vocês leem depois. E aí a gente tem mais tempo para cumprimentar’. Ou às vezes ele deixava o discurso de lado e falava: ‘Façam perguntas e a gente vai conversar’. Essa impressão que ficou, de uma pessoa muito próxima. Ele falava que proximidade é muito importante e tentava viver isso.A morte do Papa Francisco aconteceu em um momento simbólico, logo após o Domingo da Páscoa e no ano do Jubileu. Como você vê essa coincidência no contexto da espiritualidade católica?Foi muito representativo ele ter morrido nesse momento, porque primeiro o Jubileu simboliza os 2025 anos do nascimento de Cristo. É um momento de festa na Igreja, mas também de portas abertas. Esse símbolo das igrejas que se abrem, da Porta Santa. E o Papa abriu algumas dessas portas. Foi muito simbólico, porque o pontificado dele foi de portas abertas. Ele tentou abrir as portas da Igreja para acolher todos, para que ninguém se sentisse fora. Ele dizia que se alguém te disser que não há lugar na Igreja para você, não aceite essa resposta. Ele dizia isso para os jovens principalmente. Dizia que é preciso abrir mesmo e acolher e ele fazia gestos nesse sentido. O Jubileu representa isso: a misericórdia e o acolhimento. E depois o Domingo de Páscoa, que você mencionou, é o símbolo da ressurreição. É o centro da fé cristã. Que a vida não termina nesse mundo, continua na vida eterna. A ressurreição é isso. Então, ele morrer e fazer sua última aparição pública no Domingo de Páscoa, e morrer logo em seguida, é a esperança da ressurreição. Acho que fica muito visível isso.Francisco foi o primeiro Papa sul-americano e o primeiro Papa jesuíta. Como é que essas identidades moldaram o seu pontificado?O fato dele ser jesuíta trouxe a espiritualidade dos jesuítas para o centro da Igreja. E foi uma coisa rara. Porque os jesuítas, por norma e disciplina, não aceitam cargos muito altos de liderança na hierarquia da Igreja. Quando você tem um jesuíta em um cargo de bispo, por exemplo, é uma exceção. Tradicionalmente eles mantêm outras funções. Então, um Papa jesuíta foi uma grande exceção. Historicamente foi o primeiro. A espiritualidade dos jesuítas trouxe muito no pontificado. Essa coisa do discernimento. Ele falava muito de discernimento. A gente não precisa tomar decisões de supetão. A gente precisa discernir. A gente precisa ver para onde o espírito está levando. Não é só uma decisão do ponto de vista mundano. É sempre do ponto de vista espiritual. Sempre se colocar em oração e tentar entender onde o espírito está levando. E o fato de ser latino-americano trouxe um pouco essa informalidade que ele tinha, do improviso, dessa proximidade, do bom humor. Isso é uma coisa muito nossa da América Latina. E, acima de tudo, essa visão popular da Igreja do povo. Ele era um Papa que vinha de uma Igreja do povo. Ele estava ali sempre no meio do povo. Na Argentina, ele visitava as pessoas nos bairros, nas vilas. Ele andava de trem. Ele era o arcebispo, mas vivia de forma muito simples. Era um Papa do povo. E ele trouxe isso. Essa visão do documento de Aparecida. Ele era o Papa do documento de Aparecida. Aquele documento que foi aprovado na Conferência de Aparecida no Brasil. Era muito forte a marca da América Latina no pontificado dele.Você já falou das características pessoais do Papa. E muito se fala que, com essas características, ele tornou a igreja mais aberta e acolhedora. O que exatamente mudou nesse sentido?Primeiro, houve uma mudança de estilo. Que foi justamente essa personalidade dele. De ir ao encontro. Por exemplo, aquilo que ele fazia na Quinta-feira Santa de ir nas prisões e lavar os pés dos presos. Esse é um símbolo muito forte. Fazer o lavar-pés numa prisão. Ir lavar os pés de mulheres. Lavar os pés de pessoas que nem são católicas. Alguns eram muçulmanos. O Papa Francisco falava que a essência da fé cristã é adorar e servir. Adorar, que é a oração. Essa presença de Deus na vida em tudo. E servir é a expressão da fé no contato com os outros. Ele trouxe isso para o pontificado em questão de estilo. Segundo, em reformas concretas. Ele foi eleito para reformar a igreja. Primeiro, quando ele foi eleito, os cardeais falaram que precisava fazer uma reforma da Cúria Romana, o governo central da igreja em Roma. E ele começou essa reforma. Tinha ali um conselho de cardeais. Foram 10 anos para se publicar uma nova constituição. E essa reforma colocou a Cúria mais próxima das realidades locais. E permitiu, por exemplo, que qualquer fiel batizado pudesse ter um cargo de liderança. E ele fez algumas nomeações assim. Como, por exemplo, a irmã Simona Brambilla, que até o fim do pontificado era prefeita de um dos dicastérios. Não precisa ser mais um cardeal, um bispo. Teve a reforma da cúria. E outra reforma da sinodalidade. Essa igreja que toma decisões a partir das bases. Que primeiro consulta, tenta entender onde o coração da igreja está pulsando e para onde o espírito está soprando. Entender que o espírito fala para o povo inteiro. E não só para a hierarquia da igreja. É ouvir isso e depois tomar as decisões. É um processo muito mais lento, muito mais complexo. Às vezes um pouco confuso. Mas o Papa Francisco acreditava muito nisso, nessa evolução também da sinodalidade na igreja.Apesar dessa abertura e dessas reformas, você costuma dizer que ele não era exatamente um progressista. Qual é a nuance aí?Ele não era um Papa de respostas simplistas para problemas complexos. Ele dava respostas complexas para problemas complexos. Defendia a doutrina da Igreja na sua integralidade. Ele só fez a mudança na doutrina no tema da pena de morte. Hoje a Igreja é contra a pena de morte em qualquer condição. Algo que os outros papas já estavam sinalizando, mas ele mudou o catecismo da igreja sobre isso. Fora isso, foram gestos e algumas mudanças de questões do ponto de vista pastoral. O que quer dizer isso? Quer dizer, olhar mais para os problemas com uma abordagem de pastor. E não tanto de juiz. Uma abordagem mais de acolhimento e de deixar também um pouco quem está ali na realidade local decidir. O Papa não queria decidir tudo sozinho. Ele queria que as igrejas locais também pudessem decidir mais. Dava mais liberdade para a igreja local. Não é ser mais progressista ou mais conservador. É uma decisão: onde a igreja local achar que é possível fazer determinadas coisas, isso vai ser feito. Onde não é possível, não vai ser feito. Mas diria que ele é mais reformador. A palavra seria essa: reformador. Papa que veio para reformar e que permitiu que cada pessoa na Igreja e também cada igreja local pudesse ter uma identidade sua. Uma identidade própria, mesmo estando em comunhão com toda a Igreja.Sobre a sucessão, você já disse que dificilmente a gente vai ter outro Papa latino-americano. Por quê?A sucessão é sempre um exercício de achismo. A gente especula, porque tudo vai acontecer na hora que os cardeais se juntarem e começarem a conversar. Eles nem se conhecem direito. São 135 cardeais de diferentes lugares do mundo e que não se conhecem tão bem. Então, a gente não sabe direito quais serão os critérios principais. A gente pode deduzir algumas coisas. Mas acho que, por causa dessa marca muito forte da América Latina que ele trouxe, será difícil que se escolha outro latino-americano. Você prolongaria por mais um tempo essa visão de Igreja da América Latina, que é válida e enriqueceu muito a Igreja como um todo, essa igreja global, digamos assim. Mas é preciso também, às vezes, ter um pouco de alternância nesse sentido. Então, acredito que será difícil colocarem outro latino-americano. Posso errar, mas acho que nesse momento a tendência não é essa. Eu olharia mais para a Europa mesmo, ou para alguns nomes de outros lugares do mundo.Com o crescimento do catolicismo na África e na Ásia, você acredita que há chances reais de termos um Papa vindo dessas regiões?A chance existe, mas acima de tudo, a visão deles de Igreja vai influenciar a decisão, quem quer que seja. É possível que seja escolhido um deles, mas ainda o fato de que eles vão ter voz nessa decisão, mais do que no passado. Eu acho que isso é muito importante, independentemente de quem seja eleito. Eu acho que isso vai influenciar a decisão, que seja alguém que tenha, no mínimo, um olhar aberto para a realidade da Igreja periférica, digamos, mas que é onde realmente a igreja cresce hoje, principalmente na Ásia.Mesmo com toda essa imprevisibilidade, dá para dizer que existem favoritos hoje entre os cardeais? Ou você acredita que esse próximo conclave pode ser uma grande surpresa, como foi o anterior?Pode ser as duas coisas. O que a gente sabe é que os cardeais não se conhecem muito bem, e que eles vêm de lugares muito diferentes. O que pode acontecer é que, por eles não se conhecerem tão bem, que eles acabem votando em nomes que são já muito conhecidos. Que são mais ou menos os cardeais da cúria romana, e um ou outro líder local. Da igreja europeia, da igreja da Ásia… Acabar indo nos nomes que eles já conhecem. Essa é uma tendência. Outra tendência é que haja ali uma pulverização dos votos no começo. Deveremos ter voto para todo lado, e aos poucos, eles tenham que consolidar isso em torno de alguns nomes apenas. E aí pode haver uma surpresa, porque se ficarem dois nomes meio empatados, você tem que escolher um terceiro para desempatar. E daí pode sair uma pessoa imprevista. Enfim, não tem muito como a gente prever. Mas há os nomes que circulam, que são os cardeais mais conhecidos. A gente acaba apostando naqueles que conhece melhor.Mas como você imagina o perfil do novo Papa? Dá para esperar uma continuidade ou um estilo completamente diferente do Papa Francisco?Eu acho que nesse momento, o que todo mundo tem falado, quem entende a dinâmica da Igreja global, é que é preciso que seja alguém com um perfil mais conciliador, mais de mediação. Não que o Papa Francisco não fosse assim, mas ele também fazia declarações muito fortes, e tinha opiniões muito claras sobre as coisas, muito diretas. E tinha essa personalidade muito espontânea. Talvez, numa situação em que o mundo está vivendo uma série de guerras, você precise de um perfil mais diplomático. Ou talvez de alguém que consiga colocar todo mundo na mesma mesa para conversar. Que tenha um perfil um pouco mais contido, um pouco mais invisível, menos carismático. Isso eu acho que é possível. Mas não acho que haverá uma ruptura. Acredito que haverá uma continuidade. Uma continuidade na questão das reformas, uma continuidade nos ensinamentos. Não acho que vai entrar alguém que vai começar a apagar ou desfazer aquilo que o Papa Francisco fez. Vai ser alguém que vai dar continuidade, talvez com alguma ênfase um pouco diferente. Talvez com um perfil e uma personalidade um pouco diferente também.Raio-XFilipe Domingues é jornalista há quase 15 anos. Viveu em Roma por seis anos, período em que cobriu o último ano do Papa Bento XVI — incluindo sua renúncia — e acompanha o Papa Francisco desde o início de seu pontificado. É mestre e doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, com pesquisas sobre ética da comunicação e o uso das redes sociais pelos jovens. Em 2018, foi consultor do Sínodo dos Bispos sobre os jovens, em razão de sua experiência e dos estudos na área. Atuou no G1 (Globo) e no Estadão, além de ter colaborado com veículos como UOL, America Magazine e Crux.
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