Texto de Hugo Renud:
“O terceiro mandato de Luiz Ináio Lula da Silva é o que mais acionou o SupremonTribunal Federal (STF) para tentar reverter medidas de interesse direto do Planalto desde 2003, quando teve início seu primeiro governo. De 2023 até agora, foram 19 ações desse tipo, número que ultrapassa os 17 processos da gestão inteira de Jair Bolsonaro e também as administrações somadas de Dilma Roussaeff e Michel Temer.
Para especialistas, a prática revela uma nova dinâmica na relação entre os Poderes, marcada pelo enfraquecimento do Executivo, o fortalecimento do Legislativo e o protagonismo crescente do Supremo nos últimos anos. Nesse novo arranjo político, apontam, Lula tem recorrido com cada vez mais frequência à Corte como alternativa para enfrentar embates com o Congresso e com os Estados.
O levantamento, feito a partir de 2003 com base nos dados da plataforma Corte Aberta, considerou as ações em que o STF analisa, de forma direta e definitiva, se uma lei ou norma fere a Constituição — o chamado controle concentrado de constitucionalidade — além de outros processos movidos pela União envolvendo disputas de competência com Estados.
Na prática, isso significa que o governo Lula, por meio da Advocacia-Geral da União (AGU), foi ao Supremo questionar medidas aprovadas pelo Congresso, adotadas por gestões anteriores ou editadas por governos estaduais, com o objetivo de reverter decisões que considera inconstitucionais ou prejudiciais à sua agenda. A AGU é o órgão responsável por representar os interesses do governo federal no Judiciário.
Em 2023, por exemplo, no campo do desarmamento, o governo federal questionou no STF leis estaduais que facilitaram o porte de armas, como a norma do Paraná que reconhecia a atividade dos CACs como de risco. A AGU argumentou que legislar sobre a política de armamento é uma atribuição exclusiva da União, em uma estratégia adotada como reação à flexibilização promovida durante a gestão Bolsonaro nesse tema.
Já em 2024, a AGU ajuizou uma ação contra a lei aprovada pelo Congresso que prorrogou até 2027 a desoneração da folha de pagamento concedida a 17 setores da economia, alegando que a proposta não apresentava estimativa de impacto orçamentário, como exige a Constituição. Mais recentemente, no início de 2025, o Supremo começou a analisar um pedido do governo Lula para suspender uma lei estadual que concedia porte de arma de fogo a determinadas categorias do funcionalismo público.
Em todos esses casos, o Supremo foi acionado como arena para reverter medidas adotadas por outros entes da Federação ou pelo Congresso, que o governo considera inconstitucionais ou contrárias à sua política.
Mas nem sempre foi assim. Presidentes da República tradicionalmente evitavam esse tipo de ação direta no Supremo. A intensificação desse movimento começou no governo Bolsonaro, que, por meio da AGU, ajuizou 17 processos, a maioria deles questionando normas aprovadas pelo Congresso.
Para o jurista e professor do Insper Luiz Esteves, o aumento de ações ajuizadas pelo governo Lula no STF representa um novo patamar nessa estratégia, refletindo uma aproximação deliberada com o Judiciário, especialmente em um cenário de dificuldade de articulação política. ‘É uma forma de compensar o enfraquecimento da capacidade de negociação com o Parlamento’, afirma.
Em sua avaliação, o Executivo tem recorrido ao Supremo como uma espécie de ‘resolvedor de problemas’, diante da dificuldade de superar impasses na arena política, transformando a Corte em um instrumento auxiliar de governabilidade para destravar temas nos quais enfrenta resistência no Congresso ou nos Estados. ‘Pode existir aí um movimento de buscar o STF como um órgão que pode ajudar, em alguma medida, a governar’, complementa.
Como exemplo, Esteves cita o caso das ações relacionadas à transparência das emendas parlamentares, atualmente sob relatoria do ministro Flávio Dino. Embora tenham sido ajuizadas por partidos e entidades da sociedade civil, ele avalia que o episódio evidencia o papel cada vez mais ativo do Supremo como mediador em disputas entre Executivo e Legislativo. “O STF colocou Executivo e Legislativo para ‘conversar’”, diz.
Nesse caso, explica, a intervenção da Corte acabou sendo funcional para o governo, que encontrou no Judiciário um ambiente mais favorável do que vinha enfrentando no Congresso. ‘Serviu, de algum modo, para que o governo conseguisse um cenário mais vantajoso, algo que ele não estava conseguindo apenas com a negociação direta no Parlamento.’
O professor de Ciência Política da UnB, Lucio Rennó, pontua que esse movimento faz parte de uma transformação mais profunda na forma como os Poderes se relacionam, impulsionada pelo enfraquecimento do Executivo diante de um Congresso cada vez mais fortalecido. Nessa nova configuração, explica, o Supremo passou a ser incorporado à lógica da governabilidade, especialmente diante das dificuldades enfrentadas pelo governo Lula para formar uma base sólida no Congresso. ‘É claramente uma mudança na relação entre Executivo e Legislativo no Brasil ao longo da última década’, afirma.
Essa nova equação é descrita pelo cientista político Christian Lynch, da UERJ, como ‘judiciarismo de coalizão’ — um arranjo que, em sua visão, é natural diante de um Congresso de maioria conservadora e de uma base parlamentar sobre a qual o governo não exerce controle efetivo. ‘Isso já bastaria para justificar a busca por decisões no STF’, afirma Lynch.
Embora a Corte não tenha perfil ideológico alinhado à esquerda, ele observa que sua composição é majoritariamente liberal-democrata, o que tende a gerar um ambiente mais receptivo ao governo em pautas voltadas à preservação do regime democrático, especialmente em um contexto de ameaças autoritárias vindas da extrema direita.
Se por um lado o Supremo ganha protagonismo e poder ao ser acionado pelo governo para tratar de temas sensíveis e relevantes, por outro, esse movimento pode intensificar a tensão com o Legislativo, que passa a enxergar a Corte como um ator político de peso nas disputas institucionais, avalia Rennó.
‘O STF se vê, cada vez mais, no papel de árbitro de impasses que o Executivo já não consegue mediar, principalmente com o Legislativo. As disputas vão ficar cada vez mais acirradas entre esses dois poderes’, acrescenta.
Com a perda de instrumentos políticos e de capacidade de articulação, acrescenta Rennó, o Executivo tende a acionar com mais frequência o Judiciário como forma de levar adiante sua agenda. ‘Nada mais natural, portanto, que o Executivo passe a apelar mais ao Judiciário’, conclui.
Luiz Esteves, por sua vez, chama atenção para o fato de que, em muitos casos, o próprio Executivo tem optado por não enfrentar diretamente os impasses políticos com o Congresso, repassando a responsabilidade ao Supremo. ‘Quando o governo abre mão de fazer essa conversa diretamente, ele joga o ônus para o Supremo, permitindo que se distancie de embates que, politicamente, seriam de sua responsabilidade’, alerta.
Esse tipo de movimento, avalia, transforma o Judiciário em uma espécie de rota de fuga institucional para dilemas que exigiriam articulação política — mas diante dos quais o governo nem sempre demonstra ter força para negociar. ‘O Judiciário atuou como solucionador de um problema que estava nas mãos do Executivo, e que talvez ele não tivesse capacidade política suficiente para resolver. Isso também é um sinal de que o governo Lula não está com um bom nível de articulação’, completa.”